Não é à toa que a rigidez de pensamento constitui um dos critérios diagnósticos do autismo: ela é uma das características mais marcantes da condição.
Por isso mesmo, é importante saber que ela não se traduz apenas pelo apego à rotina e dificuldade com mudanças (os sinais mais conhecidos e citados). Há manifestações menos óbvias, muitas vezes interpretadas como traços de personalidade, temperamento difícil, falhas na disciplina parental ou comportamento opositor.
Entendendo o funcionamento cognitivo
Todos nós, em certo grau, nos sentimos confortáveis com o que é familiar e conhecido. Isso inclui nosso conjunto de conceitos e valores e também os modos em que nos acostumamos a fazer as coisas. Estruturamos nossos hábitos de acordo com o que aprendemos e temos tendência a mantê-los porque nos trazem segurança.
Porém, o mundo nos expõe constantemente a novas ideias e informações, ao convívio com pessoas que apresentam perspectivas diferentes das nossas e a mudanças diversas. Adaptar-se a um ambiente dinâmico implica em fazer ajustes de expectativas, alterar planos, mudar de estratégia, abrir mão de crenças anteriores, reaprender algo, acomodar as necessidades dos outros (fazer concessões, negociar).
É natural sentirmos receio ou estranheza diante do novo (desde as coisas mais simples): tente lembrar como você reagiu a primeira vez que te falaram que não se deve lavar o arroz antes de cozinhar ou que ouviu falar em Uber. Podemos ter uma certa resistência inicial, claro – alguns mais que outros – mas geralmente nossa flexibilidade mental nos permite assimilar novas perspectivas e novos hábitos.
Rigidez de pensamento
Rigidez mental ou rigidez de pensamento é o termo usado para se referir à dificuldade em lidar com a relatividade das coisas.
Não é um traço cognitivo exclusivo do autismo, mas, dentro do espectro, ocorre em todos os “graus” (níveis de autonomia), com manifestações que variam de acordo com habilidades de comunicação, potencial intelectual e presença de comorbidades (principalmente ansiedade e transtorno de humor).
O “pensamento absoluto” (tudo ou nada, oito ou oitenta, preto ou branco), característico da rigidez mental, pode apresentar algumas vantagens: a busca pela “resposta certa” estabelece um padrão de pensamento perseverante, obstinado, focado em precisão e detalhes, qualidade importante em diversas atividades humanas. Por outro lado, a rigidez excessiva pode levar a prejuízos no aprendizado, no comportamento, na autoestima e nas relações interpessoais.
Cumprimento rigoroso de regras e rituais
A maneira com que a pessoa rígida lida com regras (externas ou criadas por ela mesma) é bem elucidativa. Quando a regra é assimilada, o cumprimento dela é levado muito a sério – e haja policiamento! Um paciente meu costumava ir de mesa em mesa no restaurante, dando “bronca” em qualquer pessoa que estivesse tomando refrigerante (porque refrigerantes fazem mal à saúde). Um outro jogava fora os maços de cigarros dos amigos do pai, pela mesma razão.
A atitude rigorosa ignora hierarquia.
Professores podem ser duramente cobrados para cumprir combinados e os próprios pais repreendidos por não estar educando bem o irmão ou ter atravessado um sinal amarelo. Regras autoimpostas são igualmente respeitadas: coisas como vestir pijama sempre que estiver em casa, só usar determinado utensílio ou cumprir rituais de exercícios, por exemplo, precisam ser obedecidas escrupulosamente.
As histórias podem parecer engraçadas, mas há muito stress envolvido em tudo isso. Não há espaço para relativização. Num extremo, alguns autistas engajam num moralismo um tanto quanto descontextualizado da realidade e tornam-se sujeitos a fanatismo religioso ou político.
A rigidez geralmente confere uma importância desproporcional às coisas. A insistência em manter e fazer tudo do jeito da pessoa muitas vezes beira o irracional, desafiando a sanidade dos familiares.
Perfeccionismo
O perfeccionismo é outro aspecto crítico. Há uma necessidade de “acertar” muito grande. É tudo ou nada. Na escola, a tarefa (ou a letra, a pintura) precisa estar perfeita ou é rasgada num arroubo de frustração. A resposta da prova deve ser completa ou o espaço é deixado em branco. Na educação física, é preciso estar no time vencedor ou então nem vale a pena participar. Mesmo nos jogos e brincadeiras com o grupo de colegas, a necessidade de estar em controle e ditar as regras prevalece. Do contrário, prefere brincar sozinho ou com um amigo “exclusivo”.
Buscar o melhor desempenho possível é algo desejável, mas existe uma linha que separa essa atitude do perfeccionismo disfuncional: neste, a autocrítica é feroz e desencadeia crises terríveis de ansiedade e frustração caso a pessoa não atinja o padrão desejado. Aliás, resistência a fazer atividades e procrastinação podem resultar da tentativa de escapar da própria cobrança, tão implacável que a pessoa prefere não se arriscar.
Acomodações e suportes
Não há uma receita única para lidar com a rigidez mental.
Algumas acomodações ambientais como a antecipação das atividades, rotina estruturada e tempo adequado para se preparar para mudanças podem ser úteis. A psicoterapia é muito importante para que a pessoa perceba os pontos de rigidez, consiga enxergar quando são prejudiciais e desenvolva planos alternativos.