“Nada existe até que tenha um nome”.
A frase é de Lorna Wing, psiquiatra inglesa que teve um papel fundamental na história do autismo.
Ela, que tinha uma filha autista, reconheceu logo a importância de se definir oficialmente o diagnóstico de uma condição que ela sabia afetar bem mais gente do que se supunha na época. Afinal, se algo “não existe”, não é possível realizar estudos a respeito, estimar sua prevalência ou estruturar serviços de avaliação e terapias.
Mas lá se vão 75 anos desde que Kanner publicou seu trabalho “Distúrbios Autísticos do Contato Afetivo”, trazendo para a atenção da comunidade científica um quadro clínico caracterizado por alterações na comunicação, na interação social e por comportamentos restritos.
E lá se vão quase quatro décadas desde que Wing questionou a visão limitada de Kanner, redescobriu os estudos de Asperger e deu início a uma revolução na compreensão da amplitude e pluralidade do autismo.
“Você não pode ser autista, já que olha nos olhos!”
Parece incrível que, apesar de todo o conhecimento que acumulamos de lá pra cá, de tudo que sabemos hoje sobre genética e neurodesenvolvimento, nossa capacidade de fazer diagnósticos tenha permanecido empacada em algum lugar entre as polêmicas históricas em torno dos critérios diagnósticos e os mitos que povoam o imaginário coletivo.
É alarmante a falta de conhecimento da maioria dos profissionais a respeito da heterogeneidade do espectro do autismo. É difícil aceitar que, nos dias de hoje, um profissional diga a uma pessoa que ela não pode ser autista porque fala bem, olha nos olhos ou abraça.
E isso acontece todos os dias.
Mas, ainda pior que isso, é saber que essas coisas são repetidas em ambientes de formação e treinamento.
Estou indignada com os relatos que ouvi em primeira mão nos últimos dias: professores universitários e preceptores perpetuando a desinformação em discussões de casos com médicos residentes e na supervisão de estudantes de psicologia, contribuindo para distorcer o olhar da próxima geração de profissionais com conceitos equivocados e já superados.
Minha intenção aqui não é a de disparar uma crítica vazia.
Quero deixar algumas observações sobre os pontos que tem sido mais confusos e fazer um apelo: se você é um profissional de alguma maneira responsável pela formação de outros profissionais, por favor, procure se aprofundar no assunto, pois sua responsabilidade é multiplicada. Se você é um estudante, assuma as rédeas do seu conhecimento, questione sempre, busque suas próprias fontes de informação.
“Mas ele fala tão bem!”
O atraso de fala é o sinal mais lembrado quando falamos em autismo. Porém, comunicação é muito mais do que fala! Ela envolve o domínio – expressivo e receptivo – de códigos de linguagem verbal e não verbal, em vários níveis e de forma independente.
Podemos encontrar alterações em vários aspectos da fala (na produção e compreensão dos sons que formam as palavras, no emprego de seus significados, na estrutura das frases, na habilidade de adequar a mensagem a uma determinada situação, na fluência, no tom e na inflexão da voz) e também na utilização e da leitura de posturas, gestos e expressões faciais.
Ou seja, podemos ver autistas com perfis muito variados: pessoas não oralizadas (mas que podem se expressar pela escrita ou por sistemas de comunicação alternativa); pessoas que falam, mas não conseguem expressar-se com clareza, que apresentam pronúncia pouco inteligível, que fazem uso de vocabulário atípico ou que repetem muitas vezes as próprias falas/falas de outras pessoas ou de filmes; pessoas que falam muito bem, até com riqueza de vocabulário e sintaxe perfeita, porém de forma inadequada a determinado contexto ou de forma robotizada, sem inflexão de voz ou com alterações de fluência.
“Mas ela abraça as pessoas!”
Os aspectos relacionados às alterações de integração sensorial são talvez os mais incompreendidos. Sim, autistas podem ser hipersensíveis a vários estímulos ambientais. Não só a determinados barulhos, como pensa a maioria das pessoas, mas também a alguns tipos de iluminação e estímulos visuais, a cheiros, texturas, contato físico, temperatura, etc. Nesses casos apresentarão comportamentos de evitação e fuga daquilo que não conseguem tolerar. Por outro lado, também podem ser hipossensíveis a esses mesmos estímulos e aí apresentarão comportamentos de busca, para “compensar” a falta daquela sensação.
Então, sim: há autistas que não olham nos olhos e aqueles que olham; autistas que evitam o toque de outra pessoa e o contato com algumas superfícies e texturas e aqueles que precisam da sensação de pressão; autistas que sentem enjoo com determinados cheiros e outros que levam ao nariz tudo que encontram pela frente; que toleram ou não barulhos, que são seletivos na alimentação ou não. E assim por diante.
“Mas ele é tão carinhoso com as pessoas!”
A menor habilidade em iniciar e manter relacionamentos sociais não deve ser confundida com falta de interesse e prazer em criar vínculos. Muitos autistas podem não demonstrar sua afeição da mesma maneira que pessoas neurotípicas, o que não quer dizer que não tenham esse sentimento.
“Mas você é tão inteligente!”
Essa é de matar!
Existem características cognitivas associadas ao autismo (maior lentidão no processamento de informações, rigidez de pensamento, tendência a focar em detalhes em detrimento do todo, dificuldades na generalização do aprendizado, disfunção executiva) e estas muitas vezes tem impacto no estilo de aprendizagem apresentado. Porém não há relação direta entre o potencial intelectual e o autismo. Podemos ver autistas com deficiência intelectual, inteligência média e superdotação. Independente do grau do autismo.
Espero ter contribuído de alguma forma com esses poucos esclarecimentos, e deixo aqui minha solidariedade aos autistas que são mantidos reféns do despreparo em sua busca pelo reconhecimento da sua condição.