Texto originalmente publicado em 2019
Lá se vão mais de quinze anos desde que iniciei minha caminhada no mundo do autismo. Neste período, o conhecimento científico na área do neurodesenvolvimento cresceu de forma exponencial e é esse acervo que fundamenta minha prática. É o que faz sentido para mim, cada dia mais. Chego a esquecer de como pode ser confuso e enlouquecedor para muitas pessoas o ambiente desta selva chamada internet.
Conversando com algumas mães no consultório essa semana, pude perceber claramente como ainda precisamos trabalhar para superar a desinformação, o preconceito e o charlatanismo. Uma delas, profissional da saúde inclusive, admitiu – num tom desanimado, depois de anos recebendo informações conflitantes de diversos profissionais a respeito do diagnóstico e das opções terapêuticas para o filho – ter chegado à conclusão de que o autismo é uma questão de “ponto de vista”.
Sinto por cada autista e familiar de autista pela imensa dificuldade de encontrar um porto seguro.
Não, gente. Autismo não é uma questão de ponto de vista. Temos sólidos conhecimentos do assunto. É terrível constatar que tanta gente permanece à mercê dos achismos.
É inegável que a falta de capacitação profissional em geral confunde as pessoas. Mas além disso, temos outro problema recorrente, relacionado àquilo que chamei de selva da internet no início deste texto.
Não importa quantas vezes as pessoas ouçam que o espectro do autismo é uma condição complexa e que cada caso é um caso. É inacreditável a quantidade de gente que se considera apta a opinar sobre diagnósticos e terapias, como se suas experiências pessoais os transformassem em experts no assunto. Familiares passam horas na internet comparando características, comportamentos… E TRATAMENTOS.
Se algo parece estar dando certo para alguém, por que não tentar? A resposta já deveria estar bem clara para todos, mas aparentemente não está.
Vou contar dois casos reais do consultório, para ilustrar o que estou dizendo.
O primeiro é de um garoto que apresentava o quadro conhecido como autismo severo até os 5 anos de idade: não respondia a estímulos do ambiente, não falava, tinha episódios de auto-agressão e esfregava as próprias fezes pelas paredes da casa. Na época, a família não tinha condições financeiras ou emocionais (estavam passando por várias situações difíceis) de proporcionar alguma intervenção para o filho. Porém, a partir de um certo momento, começaram a notar melhoras e o menino passou a apresentar uma evolução muito boa, mesmo contando apenas com os estímulos naturais do ambiente. Com 10 anos, quando o conheci, ele já falava muito bem e demonstrava um excelente aprendizado na escola. Caso os pais tivessem seguido alguma “dica mágica” e usado qualquer coisa – digamos, água do poço artesiano – para “curá-lo”, com certeza sairiam dizendo por aí que a água do poço o curou. Mas não usaram nada mesmo. A melhora observada ocorreu em função de fatores intrínsecos (neurobiológicos, a partir da maturação do seu sistema nervoso).
O segundo caso também apresentava um quadro de autismo clássico: filho de pais amorosos e bem informados, teve um diagnóstico bem precoce, aos 12 meses, por profissional renomado e recebeu suporte terapêutico de excelência, de forma intensiva. Apesar de toda intervenção, não apresentou uma evolução satisfatória. Da mesma forma que o primeiro, os fatores neurobiológicos foram preponderantes na sua trajetória, porém na direção oposta.
Para evitar mal entendidos, ressalto que os casos que acabei de citar representam situações extremas e incomuns, só foram mencionados para demostrar o equívoco de se basear qualquer decisão na experiência alheia. Aspectos orgânicos e neurobiológicos têm uma grande importância na evolução de cada pessoa, além – é claro – do amparo familiar, acolhimento na escola, acesso à assistência profissional crucial e atendimento de necessidades específicas.
Podemos fazer uma analogia com o crescimento de uma criança: há a predisposição genética familiar que determina o potencial daquele indivíduo. Assegurar uma boa alimentação, bons hábitos de higiene, horas de sono suficientes, atividade física regular e ambiente emocional adequado vai possibilitar que a criança atinja seu potencial máximo. É isso que esperamos que as intervenções terapêuticas proporcionem: o melhor desenvolvimento possível dentro do potencial particular de cada um.
Portanto, como já falei outras vezes, em outros textos, parem de comparar o que não pode ser comparado. E reflitam sobre suas escolhas no mundo virtual.
Rola de tudo em grupos de autismo. Existem comunidades maravilhosas onde encontramos acolhimento, suporte, informações úteis, troca saudável de dicas para lidar com algumas dificuldades. Mas há espaços tóxicos, cheios de julgamentos, dedos apontados, agressões gratuitas, muita pseudociência, exploração da vulnerabilidade de alguns.
Não dá pra se jogar de cabeça nesta selva.