Experiências pessoais não são evidências científicas

Fazia poucos dias que o paciente tinha saído da UTI. Um quadro grave de pancreatite aguda, que quase o matou. Sentado na cama da enfermaria, ele contava pra quem quisesse ouvir:

“Foi porque comi salada com azeite no almoço e depois comi melancia. Não se pode misturar azeite com melancia”.

Na época, eu estava no quarto ou quinto ano de medicina e ouvia, indignada, aquela bobagem ser repetida muitas vezes. Ainda tentei argumentar com ele, mas desisti depois de algumas tentativas. Ele tinha uma narrativa definida. A dor horrível que o levou ao hospital dias atrás havia começado logo após a referida refeição, portanto, para ele, não restava a menor dúvida quanto à sua origem.

O cérebro humano foi programado para buscar explicações, para entender como as coisas estão relacionadas entre si. Nossa mente processa as informações que recebe, estabelece associações, questiona, procura respostas o tempo todo.

Essa é a base do pensamento lógico – e elaborar hipóteses é parte do método científico.

Claro que há um longo caminho a ser percorrido entre hipóteses e conclusões, porém essa distância costuma ser rudemente ignorada pela certeza prepotente das experiências pessoais. 

“Aconteceu comigo” transforma-se numa espécie de argumento definitivo, de passe livre de autoridade no assunto, muitas vezes para atender a interesses profissionais/ financeiros, alimentar o próprio ego ou confirmar uma visão pessoal de mundo pré-existente.

Experiências pessoais podem ser interessantes, instigantes, informativas, ilustrativas, inspiradoras, emocionantes. Mas são apenas isso: experiências pessoais. 

Tem sido triste observar o espaço que essas narrativas vêm conquistando em todas as áreas, sobretudo na área da saúde. Pessoas com pouco conhecimento, mas cheios de certezas, diante de um público muitas vezes fragilizado e ávido por respostas simples.

Por mais que estejam perigosamente amplificadas por plataformas poderosas, essas percepções não podem ser usadas para ditar normas às demais pessoas ou para julgar vivências diferentes uma vez que não conferem competência para depreciar o conhecimento científico, menos ainda para sustentar teorias da conspiração.

Seres humanos são incrivelmente diversos em todas as suas particularidades e trajetórias. Há que se ter cuidado com as narrativas que nos cercam – inclusive não custa nada questionar as próprias de vez em quando.

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Dra. Raquel Del Monde

É médica formada pela USP – RP (1993), com residência em Pediatria pela Unicamp (1996) e Treinamento em Psiquiatria da Infância e Adolescência também pela Unicamp (2013). Viu sua carreira mudar quando seu filho mais velho recebeu o diagnóstico de autismo em 2006. Desde então, vem se dedicando exclusivamente ao atendimento de pessoas neurodiversas, ao aprofundamento nas questões da neurodiversidade, e tornou-se uma ativista da luta anti-capacitista.