Um dos temas que mais preocupam familiares e profissionais que estão em contato direto com autistas é a agressividade.
Sim, muitos autistas – como todas as pessoas, na verdade – podem ter reações agressivas. Há vários estudos e teorias sobre a origem e o significado das manifestações de agressividade nos relacionamentos humanos. Não é uma questão restrita a uma ou outra parcela da população.
É bom deixar claro que o comportamento agressivo não é uma característica do autismo em si e nunca esteve entre os critérios diagnósticos. Ainda assim, como também acontece em outras condições neuropsiquiátricas, algumas dificuldades enfrentadas por alguns autistas os tornam mais vulneráveis e propensos a episódios de agressividade.
Definindo agressividade
Vamos começar definindo agressividade como todo um repertório de ações de ataque, de natureza verbal (gritos, xingamentos, ameaças, ofensas e respostas hostis) ou física (violência dirigida a si próprio, a outras pessoas ou a elementos do ambiente). Os episódios de comportamento agressivo que vemos com frequência nos autistas são do tipo reativo, ou seja, ocorrem em resposta a algo percebido como ameaçador ou frustrante, geralmente com forte componente emocional e acompanhado de reações físicas.
Identificando os gatilhos
Identificar o fator que desencadeou a reação nem sempre é fácil ou óbvio – seja para as pessoas presentes ou mesmo para o próprio autista, mas certamente é o primeiro passo para se lidar com a situação de modo respeitoso e construtivo. Conhecer os principais “gatilhos” pode ajudar a tornar esses momentos menos confusos e a estabelecer um roteiro para evitar uma crise ou delinear uma estratégia de ação quando ela acontece.
A ideia é apresentar aqui esses possíveis fatores na forma de um check list, mas já com o alerta de que as coisas não são tão simples assim: muitas vezes eles estão associados e um deles é só a gota d’água que faltava para transbordar um copo já cheio.
- Desconforto físico: sensações incômodas de fome, sede, cansaço, indisposição ou dor estão entre os gatilhos mais comuns para o comportamento agressivo. Todo ser vivo, em maior ou menor grau, fica vulnerável a um estado de irritabilidade crescente quando não tem suas necessidades orgânicas atendidas ou quando está em sofrimento físico. Se juntamos a isso as alterações na percepção sensorial e as dificuldades de comunicação presentes no autismo, a reação resultante pode ser potencializada. Muitos autistas experimentam tais sensações físicas de forma diferente que pessoas neurotípicas. Algumas vezes amplificada, levando a uma resposta aparentemente desproporcional aos olhos das outras pessoas. Outras vezes, a percepção da sensação é diminuída, inespecífica e difusa. Por exemplo, um autista pode estar sem comer um dia inteiro, sentir um mal estar crescente e quase insuportável, sem conseguir identificar essa sensação como “fome”. Nesse caso, ter boas habilidades verbais não contribui muito para comunicar seu desconforto, pois nem ele mesmo consegue elaborar o que sente.
- Intolerância sensorial: o Transtorno do Processamento Sensorial que acompanha o autismo com tanta frequência, faz com que os estímulos sensoriais externos (luzes, barulhos de todo tipo, cheiros, sabores e sensações tácteis diversas) bem como os internos (informações que recebemos do nosso próprio corpo) sejam percebidos de maneira muito diferente. Alguns estímulos, banais para as outras pessoas, podem ser insuportáveis e gerar comportamentos de evitação e fuga, enquanto outros estímulos simplesmente não chegam como deveriam, deixando uma lacuna onde deveria haver uma sensação e gerando comportamentos de busca. Os gatilhos sensoriais são provavelmente os mais negligenciados. A maior parte das pessoas desconhece as alterações sensoriais do autismo e dificilmente reconhece quando estão por trás de um comportamento difícil.
- Dificuldades de comunicação: um engano muito comum é que apenas os autistas que não falam têm problemas para se comunicar. Entretanto, esse é um déficit central no autismo. Há dificuldades na comunicação verbal (que utiliza palavras) tanto receptiva (entendimento literal, não compreensão de expressões, ironias ou linguagem figurada) ou expressiva (desde a não utilização da fala até dificuldade de usar a linguagem de forma clara, num contexto esperado) e também na comunicação não verbal (que se vale de gestos, expressões faciais e corporais). Não conseguir entender determinado contexto ou fazer-se entender é uma experiência frustrante e afeta profundamente os relacionamentos entre as pessoas.
- Rigidez de pensamento: muitos autistas tendem a enxergar o mundo em padrões rígidos. Preto ou branco. Oito ou oitenta. Não há muito espaço para concessões, nuances ou sutilezas. Uma característica que pode ser preciosa para alguns aspectos profissionais e de relacionamentos, mas que também pode engessar hábitos, rotina e a capacidade de acomodar diferentes perspectivas e mudanças no geral, levando a um comportamento sistemático e inflexível. Geralmente acaba sendo interpretada como teimosia, oposição e “gênio ruim”.
- Comorbidades psiquiátricas: a co-ocorrência de TDAH, transtornos de ansiedade e ou humor, depressão ou problemas cognitivos tornam bem mais difícil para um autista lidar com as demandas que a vida impõe.
O que podemos fazer a respeito?
Como dissemos antes, o primeiro passo é analisar os fatores envolvidos nos episódios de respostas agressivas, lembrando que a importância de cada um deles varia muito de uma pessoa para outra. A observação atenta, sensível e persistente é fundamental neste processo e, em muitos casos, a avaliação de bons profissionais pode contribuir bastante para a compreensão de alguns desencadeantes.
Com essas informações em mãos, conseguimos delinear estratégias em torno de duas rotas de ação: reduzir demandas e aumentar suporte.
1 – Reduzir demandas: quando determinado ambiente (físico ou social) impõe exigências acima do tolerável para determinada pessoa, atuamos no sentido de modificar alguns de seus elementos para que esta pessoa tenha a segurança necessária para regular suas respostas. Isso inclui:
- Planejar a rotina para evitar sobrecarga orgânica (tempo suficiente de sono e repouso, refeições regulares, proteção térmica adequada, atenção a questões de saúde geral)
- Eliminar ou reduzir estímulos sensoriais aversivos, como, por exemplo, exposição a cheiros, barulhos ou texturas intoleráveis. Isso requer às vezes uma investigação bem extensa e pode implicar em várias mudanças no ambiente.
- Adequar as tarefas do dia a dia, o trabalho escolar ou profissional com atividades que sejam não só compatíveis com as habilidades individuais e desenvolvimento cognitivo, mas também significativas para a pessoa. Nem sempre as tarefas que realizamos na vida são prazerosas, mas é essencial que sejam significativas.
- Oferecer maneiras alternativas de realizar atividades e materiais diferenciados.
- Parar as tentativas de “normalização”: expectativas irreais para que a pessoa “esconda” comportamentos que a façam parecer diferente aos olhos dos outros (stims, modo de se relacionar) representam um fardo injusto e pesado demais. Óbvio que vamos trabalhar para direcionar estereotipias auto-lesivas ou para dar ferramentas para a socialização, mas sempre tendo em mente o bem estar da pessoa autista e não o que os outros possam pensar dela.
2 – Aumentar o suporte: ampliar o acesso do autista a formas mais eficazes de atingir seus objetivos.
- Comunicação efetiva: existem muitas formas de melhorar a comunicação, com autistas verbais ou não verbais. Usar linguagem clara e objetiva, evitando figuras de linguagem ou expressões confusas. Caprichar na dicção e manter o tom de voz baixo. Certificar-se de sua compreensão. Dar o tempo necessário para que a informação seja processada e para que o autista possa elaborar sua resposta. Validar a intenção comunicativa da pessoa, considerando tanto sua linguagem verbal como a não verbal (gestos, expressões faciais e corporais). Permitir que se expresse de outras maneiras (desenhos, símbolos, cartões, escrita, métodos de comunicação alternativa). Alguns autistas que normalmente falam muito bem podem não conseguir se expressar em momentos de sobrecarga e também podemos combinar códigos para usar nesses momentos.
- Estruturar o ambiente: a organização e sinalização do espaço de convívio e a previsibilidade da rotina dão segurança e reduzem a ansiedade.
- Empoderar o autista: informação é poder! Ter conhecimento da própria condição, da origem das suas dificuldades e do que pode fazer para lidar com elas é fundamental. Ter um “plano de ação” para momentos de sobrecarga ou crise (saber a quem recorrer, como pedir ajuda, o que fazer) pode fazer toda a diferença.
- Tratamento das comorbidades psiquiátricas associadas: em alguns casos, as dificuldades de auto-regulação causadas pelas comorbidades são muito grandes e todas as medidas anteriores não serão suficientes para evitar os episódios de agressividade. Nesses casos, terapia psicológica e mesmo medicamentos podem ser necessários.
Na prática, como sempre, as coisas são mais difíceis do que parecem.
Além da dificuldade em implantar esses recursos em casa e mais ainda em outros ambientes, o senso-comum condena muitas dessas estratégias com argumentos do tipo “Ele precisa aprender a viver nesse mundo, passar a mão na cabeça não vai facilitar a vida dele lá na frente” ou “Vocês estão criando essa criança numa bolha, ensinando a ter tudo do jeito que ela quer” ou “Ele está manipulando vocês e vocês estão caindo nesse jogo”.
Portanto, ter conhecimento acerca das características do autismo (e ter em mente, com clareza, os objetivos dessas acomodações) é fundamental para caminharmos em direção a um mundo que aceita e abraça a diversidade.