Em 1938, o pediatra austríaco Hans Asperger fez a primeira apresentação pública sobre autismo da história. Após uma década de trabalho acompanhando cerca de 200 pessoas com um quadro clínico ainda sem descrição na medicina, ele estava pronto para falar a seus colegas sobre essa condição, que denominou “Psicopatia Autística”.
Talvez a maior parte dos médicos e pesquisadores tivesse limitado suas descrições às dificuldades apresentadas por aqueles pacientes, à sua falta de habilidades sociais, aos comportamentos repetitivos e estranhos. Mas Asperger e sua equipe enxergaram além disso tudo. Trabalhando dentro da perspectiva da Heilpädagogik (pedagogia terapêutica), eles haviam presenciado aptidões e talentos notáveis entre seus pacientes. Mesmo entre aqueles que haviam sido banidos do sistema escolar como sendo totalmente incapazes de aprender, havia crianças com memória excepcional, interesses incomuns, elevado poder de observação e desempenho extraordinário em várias áreas do conhecimento e das artes. Em um discurso de 1938, chegou a perguntar à sua plateia “Quem entre nós não reconhece a caricatura familiar do cientista autista, que, apesar de alheio e desastrado, pode ser capaz de feitos extraordinários em determinada área?”
Na verdade, Asperger sabia que estava diante de uma condição clínica heterogênea, que abrangia “todos os níveis de habilidade, do gênio altamente original, passando pelo excêntrico estranho que vive em um mundo próprio até o indivíduo mais severamente afetado, com distúrbio do contato, comportamento automatizado e deficiência intelectual”.
E mais: ele estava convicto de que as qualidades positivas e negativas dessas pessoas eram dois lados da mesma moeda, aspectos necessariamente interligados e vindos de uma mesma origem, que ele acreditava ser genética.
Dias atuais
Ainda hoje, passados tantos anos desde as primeiras descrições clínicas do TEA, e apesar dos avanços na área, muitas perguntas sobre o funcionamento intelectual no autismo permanecem sem resposta.
Em 2015, um estudo realizado na Escócia mostrou que uma variação genética que aumenta o risco para autismo está associada a maior habilidade cognitiva. Talvez seja uma pista para desvendar esse enigma. Afinal, mesmo que a experiência clínica permita inferir que algumas das diferenças do processamento de informações do cérebro autista – a busca por padrões, a sistematização, o hiperfoco, o apego aos detalhes, a memória privilegiada – possam favorecer o aprendizado, ainda assim não explica os casos de habilidades espantosas, como vemos em pessoas como Glenn Gould, Stephen Wiltshire, Daniel Tammet e tantos outros.
Consideramos como superdotação/altas habilidades (SD/AH) um desempenho elevado em relação aos pares, de forma isolada ou combinada, em uma ou mais das seguintes áreas: conhecimento acadêmico geral ou específico, capacidade psicomotora, talento artístico, pensamento criativo e liderança.
Estima-se que 3,5 a 5% da população mundial apresente SD/AH.
Quando as pessoas que apresentam esse desempenho extraordinário também possuem déficits em outras funções (como é o caso do autismo), chamamos de Dupla Excepcionalidade.
SD/AH, por si só, não garante sucesso
Até o momento, não contamos com estatísticas confiáveis da Dupla Excepcionalidade no Brasil. Ambas as condições (TEA e SD/AH) são subdiagnosticadas em nosso meio. Além disso, nem sempre os testes utilizados em avaliações da inteligência são adequados para pessoas autistas. Então, muitos dos nossos autistas seguem sem ter suas capacidades reconhecidas e sem o suporte pedagógico que necessitam para seu desenvolvimento pleno. Sim, porque ter SD/AH, por si só, não garante o sucesso acadêmico. As alterações de comunicação, de comportamento e sensoriais típicas do autismo podem atrapalhar a vida escolar.
Muitas vezes o aluno com Dupla Excepcionalidade tem dificuldades na compreensão de comandos e enunciados, recusa-se a fazer algumas atividades (cópias escritas, como exemplo muito frequente!), insiste em realizar as atividades do seu jeito e não do jeito que se ensina, desinteressa-se do material apresentado, desenvolve aversão pela sala de aula. Seus apartes curiosos podem ser tomados como arrogância ou desafio à autoridade do professor e sua percepção limitada do contexto social pode torná-lo alvo fácil de brincadeiras de mau gosto. Com cicatrizes duradouras.
Ao que tudo indica, uma volta ao passado – àquele conceito de pedagogia terapêutica da Viena de antes da guerra – traria grandes benefícios para todos. Enxergar além das aparências, não apenas as dificuldades, mas as potencialidades e os talentos que possam estar escondidos e promover um ambiente em que eles possam aflorar sem medo.
Toda vez que avalio um autista com altas habilidades sinto o mesmo misto de espanto e deslumbramento. Pode ser um adulto exibindo seu conhecimento enciclopédico, embora leve a própria família à loucura com sua rigidez de comportamento, ou um toquinho de 4 anos que só fala em ecolalia e mostra um encantamento e uma facilidade absurda com números e cálculos. Uma adolescente que ainda não domina a escrita, mas faz desenhos absolutamente fantásticos. Ou um pequeno que não interage com nenhum coleguinha da educação infantil, mas lê e escreve com fluência em dois idiomas.
O cérebro humano é mesmo extraordinário.
A maneira como alguns autistas desafiam nossa rasa lógica neurotípica é só mais uma evidência disso.