Imagine que seu filho está com uma gripe forte. Ele está com febre alta, mal estar, congestão nasal, tosse e até uma certa dificuldade para respirar. Você o leva ao médico que mede a temperatura com um termômetro, examina a criança, pede um exame de sangue e um RX do pulmão, prescreve medicamentos e orienta você quanto aos cuidados que deve ter e quanto à observação dos sinais de melhora e piora. Em casa, você monitora o estado dele: checa a temperatura, observa se está respirando melhor, se mostra melhora na disposição para brincar ou alterações no apetite etc. Dependendo do caso, o médico pede para reavaliá-lo em dois a três dias e talvez precise repetir alguns exames para se certificar se o organismo está reagindo bem ou se está evoluindo com alguma complicação (como uma pneumonia, por exemplo).
Podemos constatar nesta situação, bastante comum, que fazemos uso de critérios para avaliar como está evoluindo o quadro da criança. Alguns desses critérios (a temperatura aferida com termômetro, o exame de sangue, o RX) são objetivos. Isso significa que vão dar os mesmos resultados, independentemente da pessoa que realizou. Alguns desses critérios (a avaliação clínica da criança ou a observação da mãe em casa) são subjetivos. Ou seja, embora possam ser observados por diversas pessoas, nem sempre suas conclusões serão as mesmas. Até mesmo o exame físico da criança – a princípio padronizado por parâmetros clínicos bem definidos – pode ser afetado pela percepção individual do médico, sua habilidade técnica, experiência e grau de empenho.
A mesma coisa acontece em condições orgânicas crônicas como hipertensão arterial e diabetes. Além do relato do paciente acerca de como está se sentindo (dado subjetivo), precisamos nos basear nas medidas frequentes da pressão e da glicemia (dados objetivos) para saber se o tratamento está sendo efetivo.
De fato, sempre que precisamos de registros mais confiáveis e que possam ser reproduzidos – como nos estudos científicos – valorizamos a objetividades dos dados.
Critérios diagnósticos na psiquiatria
No início do século passado, a maior crítica à psiquiatria era justamente a ausência de critérios bem definidos para a avaliação das diversas condições mentais. Não que elas não fossem reais, mas todos sabemos que a interpretação de algo que se manifesta por alterações comportamentais é completamente suscetível ao contexto sócio-cultural. Dizia-se na época (com um triste fundo de verdade) que, se você levasse um paciente com um quadro psiquiátrico a três ou quatro psiquiatras diferentes, provavelmente acabaria com o mesmo número de diagnósticos diferentes.
De lá pra cá, o grande avanço na área da saúde mental deu-se justamente em função dos esforços para estabelecer critérios válidos para o reconhecimentos das diversas condições mentais e de como elas se diferenciam umas das outras.
Entre outras coisas, foram sendo criados instrumentos para a observação mais precisa de alguns aspectos do comportamento humano, as famosas escalas – que são, de forma simplificada, questionários dirigidos, testados e validados. Ainda assim, por mais que auxiliem no aumento da objetividade da observação (e, por tabela, no aumento da confiabilidade das informações), o progresso da neurociência (conhecimento dos aspectos genéticos, moleculares, estruturais e fisiológicos do sistema nervoso) é a grande promessa da área.
E é justamente sob a ótica da neurociência que eu quero colocar uma reflexão a respeito das escalas no autismo, especificamente da escala ATEC.
Autism Treatment Evaluation Checklist
A ATEC (Autism Treatment Evaluation Checklist) foi desenvolvida por Bernard Rimland e Stephen Edelsen, do Autism Reasearch Institute, para medir a eficácia dos tratamentos utilizados no autismo, inclusive se propondo a medir a severidade do autismo da pessoa, de uma forma relativamente simples e sem custo e que tem sido usada extensivamente. Aí já começam os problemas: o propósito intrínseco do instrumento deixa de fora alguns pontos cruciais na compreensão do autismo.
O primeiro é a compreensão de que se trata de uma condição do neurodesenvolvimento.
Isso significa que o cérebro daquela pessoa se organizou de uma forma diferente em relação ao padrão neurológico típico: a transmissão das informações de uma área a outra do cérebro acontece de forma diferente. Essa é a origem das características que definem o autismo. Neurotípicos adquirem novas habilidades ao longo da vida toda, mas neles isso não é interpretado como uma “mudança” no seu status neurológico. Aprendem a cozinhar, falar outra língua, dirigir carros, tocar um instrumento etc.
O autismo não é uma condição estática – ou seja, ele também se desenvolve ao longo da vida: assimila novas informações, organiza e utiliza o conhecimento adquirido para elaborar respostas ao meio. Muitas vezes de forma e ritmo diferentes em relação a neurotípicos, mas também num processo dinâmico.
A função das terapias é justamente apresentar estímulos de maneira a favorecer a aprendizagem. Portanto, o que essa escala mede não é a extensão do autismo e sim a aquisição de habilidades. Não há mudança no status neurológico da pessoa, e sim a construção de um repertório maior de competências.
Não se pode jogar tudo na conta do autismo
A própria atribuição da “melhora” a uma ou outra intervenção é questionável: na maior parte das vezes há uma conjunção de fatores associados ao aprendizado. Alguns deles são externos (como a utilização de estímulos ambientais específicos) e outros inerentes ao indivíduo, o que nos leva ao próximo ponto, frequentemente ignorado pelas escalas: a presença de comorbidades (condições que coexistem em grande parte dos casos de autismo).
Muitas vezes, um autista pode não evoluir tão bem quanto outros, apesar de ter o suporte das melhores intervenções terapêuticas, porque também lida com as limitações ocasionadas por dispraxias, deficiências cognitivas ou transtornos psiquiátricos.
Não se pode jogar tudo na conta do autismo.
Essa é uma questão importante, porque a noção geral que muitas pessoas tem a respeito da severidade do autismo está misturada aos prejuízos das comorbidades e não ao autismo em si.
Se um indivíduo está sempre aprendendo, o que acontece naquelas fases em que parece haver uma piora?
Com exceção das fases de poda neuronal ou de sequelas de eventos neurológicos (como epilepsia) em que podemos passar, sim, por mudança do status neurológico, o que geralmente acontece é uma dificuldade adaptativa a um aumento da demanda ambiental (exigências maiores do ambiente social, educacional, profissional etc) e não uma piora ou regressão.
Portanto, por mais que seja sedutora a ideia de reduzir toda a dinâmica de evolução neurológica a uma escala simples, precisamos ter muito cuidado com a sua interpretação.