Quando uma boa parte dos critérios que definem uma condição são descritos em termos de “déficits na comunicação social”, é mais que compreensível que haja uma preocupação imensa relacionada a vínculos afetivos.
Criar e manter vínculos significativos e prazerosos é algo essencial para nossa própria humanidade. Sim, isso se aplica a todas as pessoas.
Por essa razão, pode ser uma boa ideia começar o texto desmistificando aquela noção estereotipada de que autistas se bastam, “vivem em seu próprio mundo” e coisas do tipo. Ou que autistas “severos” não criam vínculos.
Os relatos sobre as manifestações de autistas não oralizados falam por si mesmos. As interações de autistas – com os mais diversos tipos de déficits de comunicação – quando encontram espaço para estabelecer conexões em ambientes onde se sentem seguros e aceitos (como redes sociais, por exemplo) falam por si mesmas.
Portanto, sem dúvida alguma, essa é uma preocupação legítima – não só em relação a autismo, mas a todas as diferenças humanas. Todos sabemos da dificuldade de navegar em um mundo normativo.
A preocupação com esses vínculos é justamente o que está por trás de frases como “Quem vai cuidar do meu filho quando eu não estiver mais aqui?” ou “Será que meu filho vai ter amigos, vai namorar, vai casar etc?”. Em nome dessa preocupação, familiares mediam relacionamentos (até de forma inadequada e excessiva às vezes) e profissionais desenvolvem programas de intervenção variados. Está tudo bem até aí.
Mas o objetivo da conversa de hoje é deixar um alerta para todas as situações em que permitimos que essa angústia legítima passe à frente de outras reflexões importantes e assuma um peso desproporcional nas nossas decisões.
Os relatos são diários.
O que podemos aceitar em troca de um pouco de afeto e aprovação?
A criança está sofrendo num ambiente escolar inadequado e prejudicial, sem nenhum apoio necessário, mas “não posso tirar de lá, ele parece ter um ótimo vínculo com os coleguinhas”.
A terapia já deixou de mostrar qualquer resultado há muito tempo, mas “ele adora Fulana/ Fulano”.
O adolescente está cercado por amizades tóxicas, mas “é um bom círculo social”.
Adultos enfrentando julgamentos, assédios, imposições, tentativas de normalização e toda sorte de abusos para “manter vínculos” familiares, românticos, de trabalho, de amizade.
O que exatamente estamos dizendo aos nossos autistas ou a nós mesmos? O que podemos aceitar em troca de um pouco de afeto e aprovação? Estamos falando de vínculos reais?
Obviamente esse não é um texto de respostas prontas.
As situações podem ser complexas – há sempre ganhos e perdas envolvidos – e temos que considerar todos os aspectos envolvidos. Mas prestem atenção nas perguntas que não podem deixar de ser feitas: para quem e para o que importa o vínculo em questão.