Autismo no feminino

À medida que as manifestações do autismo tornam-se mais sutis e difusas, maior a exigência de um conhecimento aprofundado acerca da constelação de particularidades que o definem.

Essa é a principal razão do subdiagnóstico das mulheres autistas.

Mesmo considerando que os transtornos do neurodesenvolvimento em geral são mais frequentes no sexo masculino, a proporção de casos de autismo entre meninos e meninas continua sendo alvo de debates. A estimativa chegou a ser de 10 meninos para cada menina no passado, enquanto um recente estudo de metanálise aponta para 3:1.

Existem evidências de que o funcionamento do cérebro feminino difere do masculino em diversos aspectos, mesmo nas pessoas neurotípicas. Alguns estudos genéticos apontam variações que podem ser significativas já no desenvolvimento embrionário do sistema nervoso central de meninos e meninas e que provavelmente estão por trás das diferenças cognitivas observadas entre eles. As mulheres, em geral, tendem a verbalizar mais seus pensamentos e sentimentos e são mais atentas às reações das pessoas à sua volta, o que as torna mais competentes no âmbito da reciprocidade social.

Em relação às pessoas no TEA, resultados obtidos em grupos de treinamento de habilidades sociais envolvendo homens e mulheres sugerem que as mulheres aprendem os conceitos com maior rapidez e são mais hábeis em mimetizar expressões faciais, corporais, aspectos da prosódia e da troca social. Portanto, muitas delas aparentam ter boas habilidades sociais graças à sua maior facilidade em compreender aspectos chave da interação social e da capacidade de copiar comportamentos socialmente desejáveis observando outras pessoas. É isso que denominamos camuflagem. Em relatos publicados por mulheres autistas, muitas revelam que sentiram-se compelidas desde cedo a desenvolver a estratégia de imitar pessoas que percebiam ser bem sucedidas nos relacionamentos sociais – pessoas do seu convívio na vida real ou personagens da ficção.

Paralelamente às diferenças cognitivas, alguns fatores culturais também contribuem para o melhor desempenho feminino dentro da comunicação social. Os grupos de meninas oferecem mais oportunidades de brincadeiras simbólicas (bonecas, casinha, lojinha, escola) e de modelagem (a partir das amigas que “corrigem” determinado comportamento ou dão “dicas” de como agir nas diversas situações).

Portanto, não é incomum que as dificuldades reais que as meninas apresentam na leitura do contexto social e na elaboração de respostas comportamentais passem completamente desapercebidas, até mesmo por seus familiares. As falas e atitudes “inadequadas” acabam geralmente sendo atribuídas a timidez, falta de malícia, distração, desinteresse, imaturidade emocional, egocentrismo ou “excesso de mimo”.

Os interesses específicos (fixações) também podem ser desvalorizados numa avaliação. Muitas meninas no espectro concentram seu interesse no mundo da fantasia (princesas, pôneis, animais em geral), temas que não são estranhos ao universo das outras meninas. Para alguns examinadores, inclusive, esse interesse é interpretado como bom desenvolvimento dos recursos da imaginação e contribui para a exclusão do diagnóstico. Os próprios relatos das brincadeiras ditas imaginativas das meninas no espectro podem confundir os profissionais pois incorporam com mais frequência o uso de “scripts” (roteiros de histórias e filmes), que elas empregam para construir seus próprios enredos.

Toda essa invisibilidade tem seu preço.

A melhor percepção das reações de agrado ou desagrado das pessoas à sua volta costuma ser uma grande fonte de stress. O esforço para camuflar as dificuldades e agir “como esperado” pode ser gigantesco. Mesmo as situações comuns da rotina diária demandam muitas vezes um nível de alerta intenso e constante, grande empenho para se adequar aos diálogos e interações com os pares, além de alto nível de autocontrole para suprimir reações e comportamentos considerados inadequados. Ao longo do tempo, a tensão contínua pode levar a quadros de ansiedade e depressão, que são na verdade, secundários ao problema real. Muitas mulheres apenas procuram ajuda médica ou psicológica quando já apresentam essas questões. E, muitas vezes, recebem apenas esses diagnósticos secundários, enquanto sua verdadeira natureza permanece inacessível.

A luta das mulheres autistas por visibilidade tem encorajado outras mulheres a buscar uma avaliação. Elas querem se entender, fazer as pazes consigo mesmas, ter a chance de ressignificar suas vivências e buscar a ajuda que precisam.

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CRM 78.619/SP

Dra. Raquel Del Monde

É médica formada pela USP – RP (1993), com residência em Pediatria pela Unicamp (1996) e Treinamento em Psiquiatria da Infância e Adolescência também pela Unicamp (2013). Viu sua carreira mudar quando seu filho mais velho recebeu o diagnóstico de autismo em 2006. Desde então, vem se dedicando exclusivamente ao atendimento de pessoas neurodiversas, ao aprofundamento nas questões da neurodiversidade, e tornou-se uma ativista da luta anti-capacitista.