Autismo: o papel do médico

A falta de médicos suficientemente preparados para atender autistas é lendária.

Todos sabem que essa é uma das principais causas de atraso no diagnóstico – ou de erros diagnósticos – com todas as implicações que já conhecemos. Mas não é só isso. A lacuna deixada pela falta de atendimento médico adequado, pela falta de informações seguras e referências sólidas para as famílias, é também uma das principais razões de vermos pacientes à mercê de tratamentos inadequados e de oportunistas.

Muita gente chega a pensar que a função do médico termina no momento que assina um papel com o código do diagnóstico (o famoso CID). Por incrível que pareça, já ouvi isso até de colegas médicos. 

Não temos que nos conformar com essa situação.

Sabemos das graves falhas na formação profissional, da falta de repertório para trabalhar em equipe, das limitações impostas a quem atua no serviço público ou mesmo nos convênios, da burocracia cada dia mais asfixiante, da sensação de impotência nas situações de ausência de atendimentos terapêuticos e educacionais para encaminhar o paciente e de obstáculos no próprio âmbito familiar (negação, resistência, dificuldades de todos os tipos). Pra sermos honestos, ainda temos o viés dos ambientes de formação médica que incutem a negação da possibilidade de falhar. Sob esse peso, não são poucos os médicos que se refugiam numa atitude de arrogância e distanciamento para mascarar seu despreparo, perdendo chances preciosas de aprender. Reconhecer todos esses problemas é o primeiro passo para enfrentá-los.

Muito mais do que assinar documentos e receitas

O papel de um médico com conhecimento aprofundado no autismo vai muito além de assinar documentos e receitas (essa é a parte chaataaaa!).

Vem comigo ver quanta coisa temos a fazer por nossos pacientes:

1 – Atenção à saúde geral: garantir alimentação adequada, sono de qualidade, bons hábitos de higiene, rotina de atividades físicas e tratar os problemas de saúde são cuidados essenciais para a qualidade de vida de todas as pessoas. Mas, no caso dos autistas, é imprescindível conhecer as questões orgânicas, sensoriais, motoras e comunicativas que dificultam esses cuidados.

2 – Definir a necessidade de ampliar a investigação clínica: o diagnóstico do autismo é clínico (não depende de exames), porém, é comum haver associação com condições genéticas e orgânicas que precisam ser investigadas. Não há uma “bateria de exames” padrão a ser solicitada para todos. Temos que considerar manifestações clínicas individuais que sinalizem a necessidade de realização de exames genéticos, perfil metabólico, eletroencefalograma, exames de imagem (tomografia computadorizada ou ressonância nuclear magnética) ou outros.

3 – Identificar (e tratar quando necessário) condições neuropsiquiátricas coexistentes (também chamadas de comorbidades): condições do neurodesenvolvimento apresentam uma sobreposição considerável com transtornos neuropsiquiátricos (TDAH, ansiedade, depressão, TOC, transtornos de humor, tiques, deficiência intelectual, transtornos de aprendizagem e outros). Não raramente, são essas condições – e não o autismo em si – os maiores responsáveis pelas dificuldades e prejuízos enfrentados. Ignorá-las, sob qualquer pretexto, em qualquer planejamento terapêutico, é um dos maiores erros que se pode cometer. A atuação médica é essencial para fornecer subsídios para os outros profissionais que cuidam do paciente. 

4 – Indicar tratamento medicamentoso: o uso de medicamentos pode ser muito benéfico em alguns casos: encontrar a substância e a dose mais favoráveis e monitorar seus efeitos são atribuições (nada fáceis, por sinal) do profissional médico.

5 – Reavaliar periodicamente: a frequência da reavaliação médica varia bastante de um paciente para outro, em função das particularidades de cada um. As reavaliações geralmente incluem análise de elementos diversos (relatos pessoais, exames de saúde geral ou específicos, relatórios escolares ou dos outros profissionais, observação direta do paciente). São elas que nos permitem conhecer a evolução de cada um, se satisfatória ou não, e assim detectar se há necessidade de fazer ajustes ou buscar outros caminhos. 

6 – Contribuir efetivamente para o planejamento terapêutico do paciente: um profissional criterioso e seguro não limita-se a carimbar papéis.

Ciência e arte

A medicina já foi definida como ‘ciência e arte’. A parte da “ciência” praticamente dispensa explicações. Ainda assim, com a velocidade em que o conhecimento é produzido hoje, manter-se atualizado é um desafio constante. Neste sentido, a arrogância é uma arma apontada para a própria cabeça. Cuidar de pessoas que sentem, pensam e reagem de formas diferentes – e que são tão diversas entre si – exige que a gente aprenda com eles todos os dias.

A parte da “arte” é aquela que não se explica mesmo. Porque é algo pessoal e que só existe no espaço daquela relação humana que se estabelece a partir de uma interação profissional e que atinge um nível de intimidade único.

É ouvir aquilo que não é falado, enxergar aquilo que é invisível.

É o espaço onde a relação torna-se terapêutica por si só e transforma-se numa troca.

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CRM 78.619/SP

Dra. Raquel Del Monde

É médica formada pela USP – RP (1993), com residência em Pediatria pela Unicamp (1996) e Treinamento em Psiquiatria da Infância e Adolescência também pela Unicamp (2013). Viu sua carreira mudar quando seu filho mais velho recebeu o diagnóstico de autismo em 2006. Desde então, vem se dedicando exclusivamente ao atendimento de pessoas neurodiversas, ao aprofundamento nas questões da neurodiversidade, e tornou-se uma ativista da luta anti-capacitista.