Autismo: pensamentos repetitivos, catastróficos e decisivos

Texto originalmente publicado como uma trilogia em 2021


Hoje vamos dar início a uma trilogia de textos, um tanto quanto ousados, sobre pensamentos comuns no autismo: pensamentos repetitivos, pensamentos catastróficos e pensamentos decisivos.

São assuntos ousados na medida em que pensamentos constituem processos cognitivos subjetivos, até mesmo íntimos. Não são aparentes, não podem ser medidos ou verificados.

Mas, ao longo de tantos anos atendendo autistas – especialmente os jovens e adultos, que já são capazes de elaborar e expressar esse tipo de atividade mental – foram se acumulando inúmeros relatos incrivelmente parecidos, de pessoas muito diferentes entre si. Não foi difícil observar alguns padrões que se associavam a características comuns no autismo, inclusive referentes a critérios diagnósticos da condição.

Já aviso que não adianta procurar por esses nomes no Google: eles não existem oficialmente, foram apenas usados aqui para classificar esses padrões observados. Como sempre, a ocorrência desses pensamentos varia de uma pessoa para outra e também nas diferentes fases da vida.

Tenho certeza que muitas pessoas vão se identificar. 

Pensamentos repetitivos

“Interesses e comportamentos restritos e repetitivos” é o termo que agrupa as características do autismo que não são relacionadas à comunicação social. Neste domínio estão incluídos, de forma resumida, as estereotipias motoras e vocais/verbais, o apego à rotina e rigidez de comportamento, os hiperfocos e as alterações do processamento sensorial.

Muito autistas relatam pensamentos intrusivos (que invadem a mente, de forma que foge às tentativas voluntárias de expulsá-los) e que se repetem infinitamente ao longo de horas ou mesmo dias, atrapalhando até a realização das atividades da pessoa. Pode ser uma palavra lida ou ouvida em algum lugar, uma frase, um diálogo, um trecho de texto ou filme. Essas palavras ou frases grudam no pensamento, às vezes com vozes e entonações específicas, e ecoam por um bom tempo.

É algo que pode ser comparado com ecolalia, porém não é verbalizado oralmente. Às vezes, chamo de estereotipias de pensamento (no texto de Estereotipias, explico por que uso essa palavra aqui, ao invés de stims), porque também podem surgir num contexto de necessidade de regulação (lembram do Sam, de Atypical, e sua frase dos pinguins?) ou aleatoriamente.

Esses pensamentos repetitivos diferenciam-se dos pensamentos presentes no TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo) e dos hiperfocos porque não se referem a preocupações específicas ou a um interesse ou uma situação em particular.

Embora possam parecer uma atividade mental inocente, os pensamentos repetitivos podem tornar-se tão frequentes a ponto de perturbar o trabalho ou estudo da pessoa, especialmente em épocas de maior ansiedade.

Pensamentos catastróficos

Antecipação e previsibilidade são palavras chaves quando falamos de estratégias no autismo. A necessidade de se organizar mentalmente diante de um mundo caótico faz com que a pessoa autista busque o conforto do conhecido, daquilo que é seguro. Por isso o apego à rotina, a preferência por trajetos habituais e contextos familiares, a criação de rituais e manias.

Ao longo da vida, muitos autistas desenvolvem estratégias para lidar com situações novas. Essas estratégias geralmente envolvem a elaboração de um roteiro e um planejamento para enfrentar imprevistos.

Imprevistos são odiosos. Porque entram na categoria das possibilidades, na categoria de “tudo pode acontecer, é só uma questão de probabilidades estatísticas”.

Então, vários cenários são criados. Tem um jeito das coisas correrem bem e muitos jeitos de darem errado. A previsão do tempo falha, pessoas reagem de forma inesperada, eventos com hora marcada atrasam, dispositivos quebram, acidentes acontecem, aviões caem. Podemos ser assaltados na rua, levar uma bala perdida, pegar uma doença e morrer. Podemos ser alvos da incompreensão e da maldade das pessoas.

É difícil para quem convive com o autista tentar argumentar de forma que acredita ser razoável, porque essas coisas PODEM mesmo acontecer.

Pensamentos catastróficos paralisam e causam muito sofrimento.

O impacto na vida de cada individuo é variável. Vai desde uma simples resistência à nova situação até casos em que o prejuízo é imensurável. A pessoa pode não conseguir cumprir atividades básicas do seu dia a dia, perder o sono, ter sintomas físicos (dor de cabeça ou de estômago, dores musculares e outros) em decorrência desses pensamentos. Muitas vezes, acaba simplesmente desistindo, mesmo nos casos em que a situação em questão seja algo muito positivo, como um novo emprego ou uma viagem.

Quando falamos nos prejuízos “invisíveis” no autismo, os pensamentos catastróficos devem ser considerados. Só podemos lidar com eles reconhecendo quando estão presentes. E eles podem ocorrer diante de situações consideradas corriqueiras, como uma ida ao shopping ou ter que falar diante da classe (sim, mesmo nas aulas online). Mais uma vez, é necessário também identificar a coexistência de outros transtornos psiquiátricos que podem agravar o quadro.

Pensamentos decisivos

Todos os dias, somos levados a fazer escolhas. Mesmo para as atividades básicas do dia a dia (o que vestir para o trabalho, o que comer no almoço, que tarefa fazer primeiro etc.). Muitas vezes nem nos damos conta que existe um processo de tomada de decisões por trás de qualquer escolha. Ele envolve elencar as opções existentes, estabelecer prioridades, considerar prós e contras e, então, selecionar a alternativa que parece mais adequada. Fazemos isso automaticamente na maior parte das vezes.

Algumas características do autismo podem interferir nesse processo. O foco nos detalhes, a rigidez de pensamento, o entendimento literal, a disfunção executiva, as questões sensoriais e mesmo a dificuldade de leitura social contribuem para deixar cada uma das etapas mencionadas mais complexa.

Escolher um prato no cardápio de um restaurante, decidir que roupa comprar, que filme vai ver, estabelecer a ordem das tarefas a ser cumpridas e outras decisões corriqueiras podem ser demoradas e exaustivas.

Muitos autistas contam que permanecem fiéis a escolhas já testadas para evitar o processo. Escolhem sempre a mesma comida, do mesmo lugar. Têm várias roupas do mesmo modelo e da mesma cor. Repetem as mesmas atividades preferidas. Adotam determinada abordagem de diálogo para uma situação habitual.

Alguns relatam que delegam algumas dessas escolhas a pessoas em que confiam ou pedem a ajuda delas.

Diferentemente dos pensamentos repetitivos e catastróficos, as peculiaridades do processo de tomada de decisões observadas no autismo não costumam ocasionar prejuízos significativos. As queixas, neste caso, vêm mais das pessoas que convivem com o autista, seja pela demora em decidir, pela passividade ou pela repetição em si.

Entender um pouco melhor o assunto pode levar à maior compreensão e acolhimento, tanto por familiares como por profissionais.

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Dra. Raquel Del Monde

É médica formada pela USP – RP (1993), com residência em Pediatria pela Unicamp (1996) e Treinamento em Psiquiatria da Infância e Adolescência também pela Unicamp (2013). Viu sua carreira mudar quando seu filho mais velho recebeu o diagnóstico de autismo em 2006. Desde então, vem se dedicando exclusivamente ao atendimento de pessoas neurodiversas, ao aprofundamento nas questões da neurodiversidade, e tornou-se uma ativista da luta anti-capacitista.