Autistas e situações de confronto

O garçom traz seu prato à mesa. Não era exatamente o que você pediu, mas… deixa pra lá.

A amiga faz comentários altamente equivocados sobre o aquecimento global e você faz cara de paisagem e muda de assunto.

No trabalho, o chefe pede sugestões para um projeto. Você tem várias ideias, mas ninguém ali parece entender do que você está falando e já colocam obstáculos irrelevantes. Mas você se cala e a reunião segue.

Deixa pra lá.

Todos nós, em maior ou menor grau, procuramos evitar situações mais “hostis”, que podem resultar em bate-boca ou animosidade. O famoso “engolir sapo”. E está tudo bem se chegarmos à conclusão de que não vale a pena se indispor em muitos casos. Em boa parte das vezes, talvez seja mesmo a melhor saída.

Mas, como tudo na vida, o “deixa pra lá” costuma ter um preço. Comer algo que não estava a fim, aceitar o troco errado, ser passado para trás numa negociação, diminuir a importância dos seus posicionamentos, anular sua vontade.

Pessoas autistas podem ter dificuldades ainda maiores com essas situações. A imprevisibilidade do contexto, a incerteza de contar com recursos de comunicação social suficientes para se expressar com a assertividade esperada, a ansiedade diante da reação dos outros e das consequências, o desejo de ser aceito, tudo isso pode fazer com que o “deixa pra lá” seja o principal meio de enfrentamento nas interações em que possa haver discordâncias ou antagonismo.

Terapeutas precisam estar atentos a este ponto para trabalhar as questões individuais por trás desse comportamento, para que a pessoa neurodivergente consiga se colocar em situações mais delicadas de forma adequada, para que ela se sinta confortável em expressar sua opinião, suas vontades e insatisfações e preparada para lidar com possíveis desfechos.

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CRM 78.619/SP

Dra. Raquel Del Monde

É médica formada pela USP – RP (1993), com residência em Pediatria pela Unicamp (1996) e Treinamento em Psiquiatria da Infância e Adolescência também pela Unicamp (2013). Viu sua carreira mudar quando seu filho mais velho recebeu o diagnóstico de autismo em 2006. Desde então, vem se dedicando exclusivamente ao atendimento de pessoas neurodiversas, ao aprofundamento nas questões da neurodiversidade, e tornou-se uma ativista da luta anti-capacitista.