Texto originalmente publicado em 2021
Com a flexibilização das regras de isolamento social acontecendo de formas diversas em diferentes lugares do país, iniciamos um novo período no enfrentamento da pandemia. Acho que é um bom momento para fazer um balanço do que rolou até aqui na vida de nossas crianças autistas e do que podemos esperar daqui pra frente.
De um jeito ou de outro, todos nós tivemos que adaptar nossa rotina e nossos hábitos nos últimos meses. Falamos um pouco do impacto dessas mudanças neste texto, logo no início da quarentena, com algumas dicas para os autistas.
Alguns dos ajustes que fizemos foram temporários, alguns permanecem até hoje – dependendo do contexto de cada família. Tenho conversado com muitas famílias por consultas online e acompanhado a evolução das estratégias de enfrentamento dentro de suas casas. Como sempre acontece, percebemos que é impossível generalizar problemas e soluções tão diferentes entre si. Portanto, como faço toda vez que trago um tema que pode ser vivenciado de maneiras desiguais, tento abordar os aspectos prioritários, aqueles que terão mais relevância ao longo do caminho, de forma genérica, e cada pessoa faz os ajustes que forem condizentes com a sua realidade.
Com isso em mente, vamos nos concentrar nas questões que mais influenciam o desenvolvimento das crianças: saúde, escola e terapias.
Ainda temos mais perguntas que respostas para as preocupações que cercam esses três assuntos – já que a situação é inédita para todos – mas algumas reflexões e experiências podem trazer conforto ou inspiração para famílias aflitas.
1 – Saúde
Cuidar da saúde física e mental continua no topo da lista: garantir aporte adequado de nutrientes, sono de qualidade, higiene, lazer e alguma atividade física pode ter se tornado mais fácil para alguns e quase impossível para outros. Não hesite em usar toda a ajuda que conseguir e ajuste suas expectativas: muitas coisas não serão como planejadas por um tempo.
A criança está ainda mais seletiva ou o preparo das refeições está sendo mais difícil? Vamos pensar em usar suplementos vitamínicos até que as atividades voltem ao normal. A criança está ficando mais tempo na TV e dormindo mais tarde? Desde que não prejudique algum outro aspecto de sua vida, podemos deixar para regularizar seus horários quando tudo passar. E assim por diante. Peça dicas aos profissionais, seja criativo, faça o que estiver ao seu alcance, mas não entre em desespero. A pandemia não vai durar para sempre. Exigir demais da criança ou de si mesmo neste momento só coloca ainda mais estresse do que pode ser suportável para todos.
Lazer e atividade física são muito importantes para a regulação dos autistas. Para quem tem espaço e quintal, as opções são mais numerosas: balanços, brincadeiras com água e bola, bicicleta etc. Mas, mesmo para os que não tem muito espaço, é possível oferecer atividades com massinha, slime ou argila, brincadeiras sensoriais (enrolar a criança num edredom, massagens, mini cama elástica), dançar, brincadeiras que envolvem movimento (do tipo O Mestre Mandou). Reserve pelo menos um tempinho para isso, vai fazer bem para todos. Mas ficar com as crianças em casa em tempo integral, em confinamento, não é fácil. Especialmente quando é preciso se dividir entre outras tarefas. Estabeleça um rodízio entre os adultos disponíveis, planeje um “circuito” de atividades (mais sobre isso no texto que vai falar das terapias). Não se castigue se o uso de eletrônicos ultrapassar os limites que você idealizou.
A higiene é uma questão desafiadora para muitos. Com muita frequência, a criança autista expõe-se a um maior risco de contaminação por não conseguir usar máscara ou aderir a outras medidas de proteção (algumas tocam e põem a boca em tudo). Portanto, não importa a política de flexibilização adotada na sua cidade: atenha-se às regras de distanciamento social ao máximo que puder. Foi muito divulgada nos grupos de autismo a informação de que o autista que seja infectado e precise ficar internado tem direito a acompanhante dentro da unidade hospitalar. Porém, esse direito (também garantido a crianças e idosos sem deficiência) pode não se aplicar por questões de isolamento de doença contagiosa e no caso de necessidade de UTI. Nosso objetivo maior continua sendo evitar a infecção.
Muitas crianças também deixaram alguns cuidados de lado com a pandemia, pelo receio – justificado – de procurar serviços de saúde. É preciso avaliar as condições orgânicas de cada um e o risco de exposição à contaminação para definir a hora de atualizar essas ações. Sempre podemos aguardar mais um pouco se for algo sem importância para o momento. Porém, manter as vacinas em dia, fazer exames para controle de uso de medicamentos, retomar tratamentos contínuos (no caso de asmáticos, por exemplo) e manter a saúde dentária em ordem são cuidados que podem evitar transtornos maiores. Sempre verifique a forma mais segura para isso (muitos posts de saúde e clínicas estão adotando procedimentos para aumentar a proteção dos usuários).
Preservar a saúde mental enquanto atravessamos a pandemia é fundamental para a qualidade de vida de todos. Tenho observado que os maiores estressores para as crianças neste período tem sido o confinamento e as demandas das aulas on line. Os pais, por outro lado, têm estado num nível de estresse como nunca vi antes e isso tem se refletido nas interações familiares. É mais que compreensível: a grande maioria teve um impacto considerável no trabalho e nas finanças; estão preocupados com os riscos da doença para os familiares, sobrecarregados com demandas para as quais não foram preparados, privados de lazer e vida social e sem poder contar com os apoios habituais. Não é pouca coisa. Por isso mesmo, falamos já no início do texto em ajuste de expectativas. É preciso reconhecer aquilo que está sob nosso controle e aquilo que não está. É preciso escolher batalhas. Conscientemente. Se necessário, busque ajuda para poder ajudar: coloque a máscara de oxigênio em si mesmo antes de colocar no outro.
Mais de setenta por cento dos autistas tem alguma comorbidade (condição coexistente): TDAH, ansiedade, alteração do humor, epilepsia, distúrbio de sono. Alguns precisam fazer uso de medicação. Não descuide desse apoio, confira se tem receitas com antecedência, use corretamente. Faça contato com o médico, se necessário. Também deixamos algumas dicas sobre ansiedade aqui.
Respire fundo. Seja bondoso consigo e com os que convivem com você. Tudo isso vai passar.
2 – Crianças autistas e a vida escolar
A maior parte das crianças autistas vem enfrentando diversas dificuldades em relação ao formato das aulas online, adotado por grande parte das escolas. Considerando os ciclos Infantil e Fundamental I, os principais problemas relatados por seus pais são:
- Tempo de engajamento: mesmo quando as atividades propostas não exigem nada além das habilidades já adquiridas, é muito difícil que as crianças permaneçam engajadas nas tarefas por tempo suficiente. Elas dispersam e demonstram muita resistência a ficar paradas em frente ao monitor. No geral, também demandam a permanência de um adulto ao seu lado em casa, em tempo integral, para direcionar a atenção às instruções e ações solicitadas.
- Questões comunicativas: o entendimento literal, o maior tempo de processamento para informações orais, as peculiaridades próprias da linguagem expressiva e a falta de apoios para ampliar o alcance da mensagem (pistas visuais, sistemas de comunicação aumentativa/alternativa) dificultam o aproveitamento da aula, prejudicam a participação do aluno, além de ocasionalmente expor as vulnerabilidades da criança diante dos colegas sem a mediação adequada de um adulto
- Estímulos sensoriais: a exibição de janelas com imagens dos colegas, da própria imagem, de recursos audiovisuais, os sons dos microfones e as interrupções são fatores que prejudicam a atenção e que contribuem para uma sobrecarga sensorial.
- Conteúdo não adaptado: em grande parte dos casos, o material disponibilizado aos alunos não oferece nenhum tipo de adaptação (mesmo aos alunos que já recebiam adaptações anteriormente).
A boa notícia é que, nos casos que tenho acompanhado, as escolas têm sido bem receptivas às queixas das famílias e muitas delas tem buscado alternativas para evitar o completo distanciamento desses alunos. Lembrando que cada caso precisa ser considerado em suas características únicas, algumas iniciativas merecem ser destacadas:
- Individualização: aulas curtas e customizadas. O professor pode gravar um vídeo com as instruções (utilizando os apoios de comunicação necessários). Assim, a criança assiste no momento em que estiver mais regulada e atenta, com a vantagem de poder ouvir a aula várias vezes. O conteúdo é selecionado por sua relevância para aquele aluno, a forma de apresentação e execução da tarefa é adaptada e utiliza-se um tema do seu interesse para contextualização.
- Antecipação: a atividade é enviada com antecedência, para que possa ser impressa ou preparada pela família e são apresentados os passos necessários para dar previsibilidade à criança.
- Permitir tempo maior para a entrega e flexibilizar a maneira de execução (aquela que for mais favorável para a criança).
O diálogo franco e transparente é sempre o melhor aliado na busca de soluções – ainda mais em épocas como essa. As necessidades de cada aluno precisam ser compreendidas para que os suportes oferecidos ajudem de verdade.
3 – Terapias
Os atendimentos especializados – nas áreas da psicologia, fonoaudiologia, terapia ocupacional e psicopedagogia – são muito importantes para as crianças autistas. Estimular a aquisição de habilidades e competências precocemente é a nossa grande aposta para que os pequenos desenvolvam todo seu potencial. Quando veio a pandemia, essas atividades foram suspensas. Num primeiro momento, foi como uma pausa temporária de férias. Porém, à medida que o tempo de isolamento social se estendia, vieram as preocupações: o quanto essa interrupção vai afetar o meu filho? Será que ele pode ter uma regressão por causa disso?
Algumas crianças em processo de desfralde, voltaram a estágios anteriores. Outras apresentaram piora no sono, na alimentação, na comunicação, no comportamento – pensa na angústia desses pais…
Essas “pioras” não são sinais de regressão em termos neurológicos (como acontece ocasionalmente na poda neuronal ou em condições degenerativas). Na imensa maioria dos casos, elas refletem reações de ansiedade, ajustamento à nova rotina ou simplesmente demonstram que determinada habilidade ainda estava em construção e que precisa ser retomada – por isso a nossa insistência na priorização dos cuidados com a saúde física e mental nesse período.
Quanto à retomada das terapias, tenho visto respostas rápidas e bem criativas de muitos terapeutas, desde o início. Os atendimentos presenciais continuam sendo a exceção, pois os cuidados pra evitar contágio precisam ser rigorosos e exigem comprometimento dos dois lados, com o estabelecimento obrigatório de um pacto de confiança. No geral, os atendimentos passaram a ser no formato online. E aí entra o jogo de cintura dos profissionais.
Algumas crianças conseguiram um bom engajamento com o terapeuta nas chamadas – ok, em certos casos, depois de alguma insistência e de um tempinho para que se acostumassem com a novidade. As sessões também precisaram ser adaptadas, com maior utilização de pistas visuais e material diferenciado. Mas… da mesma maneira que vimos acontecer com as aulas online, em muitos casos o trabalho direto com a criança não foi possível.
Nesses casos, os atendimentos passaram a ser com os cuidadores. Familiares e terapeutas precisaram pensar juntos nas alternativas que tinham diante de si, identificarem os alvos mais importantes para o trabalho em conjunto e definirem suas ações. Graças às possibilidades oferecidas pela tecnologia, vídeos em tempo real ou gravações permitiam que os terapeutas monitorassem a evolução dos pacientes e como os pais se saíam como mediadores das atividades propostas. Em muitos casos, o material é enviado antecipadamente para permitir que as sessões sejam bem aproveitadas. Algumas terapeutas que conheço (vocês sabem quem são!) praticamente desmontaram suas salas de atendimento para fazer um rodízio dos seus equipamentos e materiais, outras aproveitaram utensílios e recursos da casa dos pacientes.
Embora não seja esperado que os pacientes alcancem os mesmos resultados que conseguem nos atendimentos normais, essas intervenções à distância foram muito importantes para ajudar a manter um ambiente favorável para o desenvolvimento das crianças.
A atuação dos profissionais também ajudou na adaptação de muitas crianças com as aulas online (contribuindo com a orientação em relação aos suportes de comunicação e acomodações sensoriais, por exemplo) e no reconhecimento das oportunidades para estimular a criança nas tarefas do cotidiano do lar. Como pode ser produtivo envolver a criança no preparo dos alimentos, por exemplo. A exposição a cheiros e a manipulação de texturas diversas podem contribuir para a dessensibilização de crianças hipersensíveis, em alguns casos. Seguir receitas pode ser uma excelente ferramenta para ampliar a comunicação, treinar funções executivas (planejamento e execução do passo a passo) e para a assimilação de conceitos (medidas e quantidades, informações sobre alimentos e nutrientes e mesmo noções de química e física, para os maiorzinhos).
Levar o conhecimento sobre a estruturação de atividades (planejamento, antecipação, sinalização, alternância de estímulos e uso de reforçadores) para dentro de casa também ajudou muitos pais em esquema de home office. Alguns terapeutas ajudaram a família a montar um circuito de atividades para ocupar a criança num período em que o pai e/ou mãe precisasse dedicar a atenção ao trabalho.
Quem sabe, quando tudo isso passar, podemos aproveitar algumas dessas experiências para ampliar as possibilidades de atuação, explorando melhor as opções de trabalhar em conjunto com famílias, escolas e outros profissionais. Ganhos colaterais da pandemia.