Texto originalmente publicado em 2020
A aprovação da Anvisa para o registro de medicamentos à base de Cannabis no final de 2019 agitou as manchetes de notícias e as redes sociais e tem recebido um crescente interesse na área do autismo.
Considero três aspectos principais nesta regulamentação:
É um avanço contra o estigma
A discussão sobre o uso medicinal da maconha sempre esbarrou nos preconceitos de uma parcela significativa da sociedade. Apesar de ser estudada pela medicina há bastante tempo, a visão da maconha enquanto droga recreativa que abre as portas para o consumo de substâncias mais nocivas impediu por muito tempo que o assunto fosse discutido com a seriedade que merece. Neste ponto, a liberação da Anvisa tira a maconha do “submundo” e confere aos seus derivados o status de substâncias que podem realmente fazer a diferença na vida de algumas pessoas.
A questão do acesso à substância
O custo dos derivados para uso medicinal é alto. Há uma expectativa de redução do preço após a liberação, mas ainda assim, não estará ao alcance de muita gente (como, aliás, vários dos medicamentos tradicionais). Tenho ouvido diversas críticas quanto à proibição do plantio (no sentido de que vai favorecer grandes laboratórios e limitar ainda mais o acesso da população), mas vejo de outra perspectiva. O cultivo da planta e a produção dos extratos precisam atender padrões de qualidade bem definidos. Existe picaretagem em todos os ramos de atividade humana. Liberar geral certamente levaria gente mal intencionada a entrar no “negócio” sem condições de garantir a pureza e qualidade do produto. E sabem quem seriam os maiores prejudicados? Sim, as pessoas mais desfavorecidas. Penso que a luta pelo SUS e pela ampliação do fornecimento de medicamentos é bem mais relevante do que abrir brechas para a produção caseira.
Sobre dosagens, eficácia e segurança do uso
O uso medicinal da maconha refere-se à utilização de um grupo de substâncias derivadas de subespécies da planta gênero Cannabis com o objetivo de aliviar um sintoma ou condição médica. Mais de 100 moléculas distintas podem ser extraídas da planta. As principais são o THC (associado com o “barato” do uso da maconha e com uma série de agravos à saúde e risco de dpendência) e o CBD (canabidiol, que apresenta propriedades anticonvulsivantes, ansiolíticas, anti-inflamatórias e neuroprotetoras). O canabidiol encontra evidências para indicação em adultos no controle da dor crônica e da epilepsia; quando associado ao THC, também para náuseas e vômitos pós quimioterapia e espasticidade muscular na esclerose múltipla. Porém, o conhecimento científico atual apresenta muitas perguntas ainda sem resposta quanto a outras indicações médicas, formulações existentes, dosagens, eficácia e segurança do uso. As complexas relações entre uso de maconha e o desenvolvimento de esquizofrenia e outras psicoses ainda não foram completamente elucidadas (embora a presença de THC e a dose pareçam ser os fatores principais). Também há que se ter cautela no caso de indivíduos com menos de 25 anos de idade, pois o impacto nas funções cognitivas a longo prazo são desconhecidos.
As redes sociais estão cheias de relatos empolgantes de casos em que a Cannabis mudou a vida de alguém e eu também fico na torcida para que seja uma opção eficaz, viável e segura. Porém, como acontece com qualquer outra substância com ações farmacológicas, os efeitos podem variar de uma pessoa a outra.
Já atendi casos em que não houve nenhum efeito benéfico. Portanto, é preciso uma conversa honesta entre o médico e a família antes da prescrição. Na minha prática, por enquanto, isso só é cogitado após esgotar outros recursos.