Biologicamente, somos animais sociais: interagimos com outros indivíduos da nossa espécie, estabelecendo relações cooperativas que nos trazem vantagens individuais e coletivas. Muitas espécies animais se organizam em sociedades para assegurar o sustento e a sobrevivência do grupo, com clara divisão de tarefas entre seus membros, mas a sociedade humana é de longe a organização mais complexa da natureza.
Nossas relações sociais acompanham toda essa complexidade.
O domínio de habilidades que permitem a uma pessoa ampliar seu círculo social não apenas faz com que seja “popular”, mas realmente aumenta suas chances de sobrevivência.
A socialização tem importância fundamental na vida dos seres humanos.
Por isso pais e mães se preocupam tanto com a socialização de seus filhos. Querem que se integrem ao grupo das outras crianças, que façam amizades e aprendam a resolver conflitos, que estabeleçam boas relações nos ambientes que convivem e vínculos afetivos sólidos. A preocupação é muito maior no caso de pais de crianças com condições do neurodesenvlvimento, que já saem em desvantagem neste ponto.
De modo geral, as famílias e profissionais da saúde e da educação que trabalham com essas crianças mostram-se empenhados em favorecer sua socialização. Mas algumas questões precisam ser melhor entendidas.
- Comunicação e socialização são áreas intrinsecamente ligadas do comportamento humano – tanto que acabaram agrupadas no DSM-5. Porém, a socialização bem sucedida depende não só de comunicação efetiva, mas de outras funções executivas: teoria da mente (capacidade de realizar inferências quanto às perspectivas dos interlocutores, de modo a incorporar esse conhecimento no próprio comportamento), funções executivas (capacidade de planejar e monitorar as próprias ações, definindo prioridades e inibindo reações indesejáveis), velocidade de processamento de informações, capacidade de auto-regulação, compreensão de regras sociais, repertório de experiências etc. Vemos com muita frequência que a expectativa da família fica apenas concentrada no desenvolvimento da fala (muitas vezes em detrimento de outras formas de comunicação efetiva). Quando a criança adquire a fala, erroneamente considera-se que a missão está cumprida. É fundamental expandir o trabalho para habilidades sociais como um todo.
- O treinamento de habilidades sociais não vai acontecer espontaneamente. Há uma crença geral de que mandar as crianças para a escola vai fazer com que desenvolvam todas as habilidades que necessitam nas interações sociais. Isso raramente funciona para as crianças neuroatípicas. Elas precisam de referências, de ajuda com a leitura do contexto social, de bons modelos para situações cotidianas, de role play. Em nosso mundo digital, adolescentes atípicos também precisam ser guiados para o uso de redes sociais, seus limites e suas armadilhas. Autonomia e segurança (inclusive proteção contra bullying e ciladas de todos os tipos) devem ser prioritários em nosso planejamento.
- A escola costuma ser o primeiro ambiente de vivências coletivas para todas as crianças e é realmente um espaço privilegiado para o aprendizado das particularidades da convivência social. Mas, como dissemos anteriormente, não basta frequentar uma escola para “socializar”, como escutamos com frequência. Estar em meio a outras crianças de sua faixa etária não diz nada a respeito da qualidade das trocas entre elas. Aliás, minha experiência com relatos de escolas sobre a socialização de crianças neuroatípicas mostra uma discrepância grande entre o que é observado e a realidade vivida pela criança. Situações de bullying e exclusão social não ocorrem de forma escancarada e dificilmente são detectadas. Penso que é necessário uma estruturação maior no treinamento de habilidades sociais das crianças. A escola pode funcionar como um local onde essas habilidades seja generalizadas, mas grupos menores (com 2-3 crianças) podem ser bem mais proveitosos a princípio.
- O significado da socialização é diferente para cada um de nós. Existem pessoas extrovertidas, que adoram estar cercadas de gente, que tem prazer em se relacionar com os outros. Também existem pessoas mais reservadas, que tem poucos amigos no mundo e que sentem-se felizes em ficar em casa lendo ou assistindo TV. E tudo bem. Muita gente acredita que autistas não gostam de se relacionar com ninguém, que estão “em seu próprio mundo” – mas esse mito já foi derrubado há muito tempo. Também existe essa variação na motivação social de pessoas neurodiversas, inclusive os autistas: alguns curtem muito, outros não. Nosso objetivo, portanto, não é torna-los pessoas sociáveis. É fazer com que tenham as “ferramentas” para que possam interagir sempre que quiserem ou precisarem. Precisamos estar alertas para não transferir as nossas próprias expectativas para as crianças.