Texto originalmente publicado em 2019
Há alguns dias, curtindo as férias, fui fazer uma massagem relaxante antes de apertar a tecla “reiniciar a rotina”. No final, naquela parte gostosa em que você está praticamente inerte na maca, sem nenhuma vontade de se mover dali, a moça senta-se ao meu lado e diz que quer conversar um pouquinho. Me conta que meus músculos e tendões estavam tensos demais, pergunta se levo uma vida estressante (não tinha mencionado minha profissão, e nem precisava, pois imagino que a quase totalidade das pessoas responderia sim) e a partir daí, passa a discorrer sobre as propriedades terapêuticas de um gel com extratos naturais que eu deveria usar no meu dia a dia. Explica como o gel penetra na pele, atinge as camadas mais profundas dos músculos, soltando suas fibras, “quebrando” os “cristaizinhos” formados pela tensão acumulada e eliminando-os pela corrente sanguínea. E não só isso. Quando aplicado na nuca e na face, o gel também libera os músculos do pescoço, auxilia nas dores de cabeça, melhora a respiração e pode prevenir rinites e sinusites. Ouvi com atenção e até admiração pela desenvoltura e convicção da jovem.
Mas não, obrigada.
O agradecimento foi sincero. Afinal, ela havia acabado de inspirar um texto sobre um assunto importante e recorrente: terapias enganosas.
Falsas promessas
Vou usar o termo terapias enganosas para me referir a produtos (suplementos, chás, óleos, extratos diversos etc) e serviços (procedimentos, intervenções em geral) oferecidos para curar ou promover alívio/ melhora das mais diversas condições de saúde, sem a necessária comprovação acerca da sua eficácia e segurança.
Terapias enganosas existem desde que o mundo é mundo. Combatê-las é, provavelmente, a coisa mais parecida com “enxugar gelo” que eu já fiz. Porém estamos falando de tempo e dinheiro desperdiçados, quando não de agravamento de condições de saúde ou mesmo danos diretos e graves ao paciente.
Como reconhecer uma terapia enganosa
A exploração da boa-fé das pessoas costuma seguir um padrão característico. O discurso é elaborado cuidadosamente para conquistar seu cliente em potencial (que chamarei de CP), valendo-se de determinadas premissas:
– A falta de conhecimento específico do CP. Geralmente é fornecida uma descrição “técnica” detalhada dos mecanismos de ação do produto ou do procedimento, que parece lógica e coerente. Algumas vezes, a explicação inclui citações de estudos e estatísticas. As palavras “descobertas recentes’ e “métodos inovadores” são frequentes. Nem profissionais da área da saúde estão imunes, já que não é possível acompanhar a velocidade das descobertas em todas as frentes de pesquisa.
– A identificação. É necessário que o CP se “reconheça” naquela situação para comprar a ideia. Quanto mais próximo o discurso da realidade da pessoa, melhor. Perguntas e comentários sobre aspectos da condição de saúde em questão, do estilo de vida ou mesmo do histórico emocional podem dar a impressão de terem sido talhados exclusivamente para você, mas na verdade se aplicam a grande parte das pessoas. Vida corrida, stress, insatisfação com trabalho ou relacionamentos, excesso de uso de telas, hábitos nem sempre exemplares, uma “mágoa guardada”. Não tem erro. Pra arrematar: “Você tem algum parente com reumatismo/ depressão/ gastrite/ diabete etc?”
– A conexão. O vendedor, via de regra, tem histórias pessoais (envolvendo ele próprio ou alguém da sua família) pra contar, com finais felizes e bem-sucedidos. A conversa é acolhedora e empática.
– A esperança. O cérebro humano é perigosamente propenso a acreditar naquilo que vem de encontro aos seus anseios, desejos, projetos e necessidades. A mulher num relacionamento abusivo acredita que o parceiro vai mudar, o jogador acredita que vai ganhar na loteria um dia, eleitores acreditam em promessas de campanha impraticáveis. É notável o poder que temos de nos convencer do que queremos.
– O bolso. O potinho de gel custava mais caro que a massagem. MAS… pensando bem, pode ser usado muitas vezes, sem sair de casa… considerando todas as vantagens (o alívio que vai oferecer, até mesmo evitando que os músculos voltem a ficar tão tensos, futuras massagens vão ser desnecessárias… também tem o lance de evitar rinites e sinusites…). Em pouco tempo, a pessoa está fazendo contas do quanto deixará de gastar com remédios e terapias convencionais (já supondo que os benefícios são reais e similares ou superiores aos que são obtidos com estes) e logo conclui que na verdade está economizando e fazendo um bom negócio.
– O apelo ao natural. Um dos grandes trunfos das terapias enganosas consiste na alegação de que seus produtos são “naturais”, sem efeitos colaterais, livres de “substâncias químicas”. Sinto fazer essa revelação, mas… tudo é “química”. Nossos organismos e o resto do universo. Substâncias que têm a propriedade de modificar alguma função do nosso corpo, sejam encontradas na forma selvagem numa floresta ou fabricadas num laboratório, são compostos químicos e podem ter efeitos desejáveis e indesejáveis. Não se iluda. Nem vou mencionar que, muitas vezes, a única coisa “natural” que existe nesses produtos é a palavra escrita no rótulo.
– Múltiplas indicações. Quando alguma coisa funciona para Alzheimer, diabete, depressão, autismo, má digestão, câncer e alergias, por exemplo, já saímos do plano da realidade. Estamos falando de coisas muito diferentes, com mecanismos fisiológicos específicos.
– Soluções rápidas – quase milagrosas. Quem não quer resolver seus problemas de uma vez por todas? Tratamentos convencionais para determinadas condições podem ser longos e nem sempre garantem o resultado tão almejado.
– A vaidade. Muitas pessoas são arrebatadas por um sentimento de superioridade ao aderir a um tratamento não convencional, como se tivessem acesso a uma informação privilegiada. Aquela coisa de pensar fora da caixinha, não se submeter ao sistema (à “máfia branca”, à indústria farmacêutica). E, uma vez fisgado, o cliente geralmente se torna um ardoroso defensor da causa. É evidente que todos nós precisamos ter visão crítica ao aderir a qualquer tratamento, mas devemos questionar sempre a razão da terapia estar restrita a tão poucas pessoas. Será mesmo que “não é do interesse das grandes empresas que as pessoas saibam disso”?
Já que essas abordagens são ainda mais tendenciosas na área do comportamento humano, vamos esclarecer algumas dúvidas legítimas que aparecem com frequência sobre terapias não reconhecidas pela ciência.
Por que parece funcionar para algumas pessoas?
Afinal, muitas vezes não é só o “vendedor” da terapia (lembrando que nessa denominação estão incluídos produtos e serviços diversos) que tem casos de sucesso pra contar. Você provavelmente conhece pessoas que relatam ter testado e aprovado determinada abordagem não convencional.
Neste ponto, precisamos fazer uma diferenciação importante: entender quando algo contribui para a saúde de forma geral e promove bem-estar e quando algo efetivamente trata/ cura uma doença ou condição de saúde.
Vamos falar de um exemplo comum: uma alimentação saudável e nutritiva traz benefícios para o funcionamento de todo o organismo, de todas as pessoas (assim como sono adequado, bons hábitos de higiene e exercícios físicos regulares), certo? Mas há uma distância gigantesca entre orientar o aporte adequado de nutrientes e dizer que o suplemento da vitamina X ou do mineral Y vai fazer seu filho falar (ou que vai “ativar” sua imunidade ou “neutralizar” as toxinas do organismo). Percebe a diferença?
Inclusive, suplementos de vitaminas e sais minerais só devem ser indicados em situações de deficiência ou insuficiência dos mesmos (que podem ser ocasionadas por falta de ingestão, perdas anormais ou em casos específicos de problemas metabólicos, doenças e cirurgias).
Da mesma forma, existe uma infinidade de coisas que trazem conforto, aconchego e satisfação: música, arte, atividades manuais, hobbies, encontros com amigos, cultivar a espiritualidade. Algumas terapias também focam em relaxamento e bem-estar. Incontestavelmente, uma pessoa tranquila e contente estará mais forte e disposta para enfrentar seus desafios. Ainda assim, é bem diferente de prometer que essa terapia de bem-estar vai “remover a mágoa reprimida que causou o câncer” ou curar TDAH. De novo, percebe a diferença?
Muitas pessoas confundem a melhora na saúde geral ou bem-estar proporcionada por alguma dessas terapias com melhora da doença ou condição específica de saúde. Porém são coisas bem diferentes. (só esclarecendo: todos podem e devem buscar esse estado de equilíbrio físico e mental; a desonestidade consiste em vender isso como tratamento).
Outras vezes, a melhora relatada é só o efeito placebo mesmo.
Que mal faz tentar?
Sempre vivi no interior de São Paulo. Nos meus quinze anos de pediatria, muitas famílias iam benzer os filhos doentes. Difícil achar exemplo mais inocente que esse. Que mal pode fazer um benzimento? Bom, muitas vezes a benzedeira dava água de torneira às crianças. Ela podia não saber, mas era dessa maneira que alguns pequenos contraíam Giardia.
As mães dos meus pacientes estão acostumadas a ouvir uma frase minha “Não tem piquenique sem formiga”. É só uma das verdades da vida. Por isso, quando alguém diz que você pode usar determinada substância sem medo, que ela não faz mal algum a qualquer pessoa, só pode estar falando de uma substância inerte – ou seja, que também não tem nenhuma ação benéfica (a não ser talvez, o efeito placebo). Porque, veja bem, para que uma substância promova qualquer tipo de efeito terapêutico, ela deve ser capaz de interagir com moléculas no nosso organismo de forma a modificar alguma função. Em outras palavras, ela deve ser farmacologicamente ativa. E se é farmacologicamente ativa, tem o potencial de provocar algum efeito indesejável também. Simples assim.
Algumas vezes, o mal das terapias enganosas pode vir da interrupção do tratamento convencional. Não me esqueço de uma conversa que ouvi no corredor do hospital, ainda na época de residência, entre duas mães de filhos com leucemia – um na fase inicial do tratamento e outro já curado. A mãe da criança curada dizia à outra que seu filho havia alcançado a cura comendo carne de piranha. A outra, interessadíssima, fazia muitas perguntas. Claro que não resisti e perguntei à primeira se o menino havia se curado apenas com carne de piranha. E ela respondeu: “Bom, ele também fez quimioterapia”. Mas a fama ficou para a piranha. Não são tão raros os casos de pessoas que apostam tudo num tratamento milagroso. E, quando as coisas dão errado, não tem a quem recorrer.
Por que alguns profissionais de formações tradicionais defendem algumas dessas modalidades?
Já me fiz essa pergunta centenas de vezes. Só me ocorrem algumas poucas alternativas. Talvez a frustração com os limites da prática convencional aliada a um processo disciplinado e contínuo de autoconvencimento. Talvez a vaidade e a busca de um lugar ao sol: o desejo de se destacar, de ser um profissional que também pensa fora da caixinha e que não se submete ao sistema. Em alguns casos inegavelmente, a cobiça: o mercado é promissor.
A ciência não tem todas as respostas ou garantias que desejamos, mas certamente é o caminho mais honesto, ético e seguro nessa busca.
E engana-se quem pensa que a ciência é algo estático: ela pode e deve ser questionada, refutada, virada do avesso e reinventada.
Por ainda mais ciência.