A utilização de sistemas de comunicação aumentativa e alternativa (CAA) é uma ferramenta muito importante para autistas com limitações no uso da oralidade: não só permite que expressem suas necessidades, preferências e intenções, como também favorece sua participação nos mais diversos ambientes e alavanca sua autonomia. É literalmente a sua voz.
Reparem na palavra “aumentativa”: os sistemas não atendem apenas as pessoas não oralizadas, atendem também aquelas com apraxia de fala e até mesmo autistas com fluência de linguagem, mas que “travam” em momentos de sobrecarga sensorial ou emocional. Ou seja, temos muitos benefícios em potencial.
Por que razão não fazemos um uso mais amplo desses sistemas no Brasil?
Como todos podem adivinhar, enfrentamos muitos obstáculos no acesso a esses sistemas. Porém, engana-se quem pensa que as dificuldades se restringem a isso. Mesmo que todos os autistas tenham oportunidade de atendimento fonoaudiológico de qualidade e alcance à tecnologia adequada, enfrentamos desafios de outras naturezas em relação ao uso da CAA.
É muito frustrante para todos os envolvidos quando investimos tempo e recursos nessas ferramentas e falhamos (e isso ocorre em mais de 30% dos casos, mesmo em países com muito mais know-how no tema, como os Estados Unidos).
O texto de hoje se propõe a discutir justamente os fatores envolvidos nessas falhas, com base num levantamento realizado pela ASHA (American Speech-Language-Hearing Association). Entendê-las é essencial para que possamos desenvolver soluções adequadas (dividi em tópicos para facilitar a apresentação).
Os sistemas em si
Os sistemas de CAA se dividem em eletrônicos (aplicativos utilizados em tablets) e não eletrônicos (utilizando cartões de imagens, como o PECS, por exemplo). Características como facilidade de uso, portabilidade e flexibilidade para acomodar ajustes frequentes são muito importantes para que sejam verdadeiramente úteis na vida das pessoas. Com exceção do período de treinamento (no qual todos estão aprendendo a lidar com a ferramenta e se adaptando), se a comunicação ficar mais lenta, dificultosa e restrita com a CAA do que com o uso da comunicação não verbal (por linguagem corporal), com certeza teremos resistência para ser usada. Os aplicativos são mais atrativos, mais práticos, mais aceitos socialmente e contam com a vantagem de ter “voz”, permitindo a interação com um número maior de interlocutores e oferecendo a dica auditiva para o autista. Por outro lado, estão sujeitos a quebrar ou ficar sem bateria, o que pode ocasionar situações difíceis. Também podem ser rejeitados pelas crianças quando instalados em dispositivos que oferecem jogos e outras formas de entretenimento. É fundamental que o sistema escolhido seja dinâmico para acomodar mudanças e ampliação do vocabulário para atender novas demandas do usuário, sempre que se fizer necessário.
Fonoaudiólogos
Em primeiro lugar, é imperioso que os cursos de graduação incorporem conhecimentos sobre uso de CAA, para que nunca mais tenhamos profissionais falando que não indicam porque “tem esperança que a criança vai falar” ou que um sistema desses prejudicaria o desenvolvimento da fala (quando sabemos que a CAA só pode ajudar nesse aspecto). Não há desculpa para privar alguém do direito de se expressar. Precisamos de especialistas com capacitação em CAA para escolher o sistema que atende melhor cada pessoa considerando suas particularidades e que recebam treinamentos periódicos para supervisionar todos os ajustes ao longo do tempo. Eles também precisam estar envolvidos com o treinamento dos familiares e outros parceiros comunicativos (professores, outros profissionais, pessoas do círculo social), ampliando as chances de sucesso, pois o uso da CAA limitado às sessões de terapia contribui muito pouco para uma melhora efetiva da comunicação do indivíduo.
Usuário
É preciso que haja compatibilidade entre as habilidades pessoais (cognitivas, sensoriais e motoras, principalmente) da pessoa e o sistema, para que o usuário domine a ferramenta. De outra forma, certamente haverá resistência. O uso da CAA deve ser significativo e satisfatório para o usuário, atendendo suas necessidades comunicativas. Isso implica que tenha oportunidades de uso frequentes e reforçadoras e presença de parceiros comunicativos motivados e engajados em diversos ambientes. O trabalho deve ser direcionado para que o sistema seja usado com o máximo de independência possível.
Família
A compreensão, motivação e participação dos familiares surgiram no levantamento da ASHA como constituindo um dos principais fatores para o sucesso ou falha no uso de CAA. Isso é compreensível, já que são essas as pessoas que mais interagem com o usuário. Quando existe a crença de que o sistema é desnecessário, que entendem melhor a pessoa sem ele ou quando a operacionalização do sistema é considerada difícil, as chances de abandono são muito maiores. Aspectos culturais também foram identificados como obstáculos em muitos casos (rejeição do formato alternativo de comunicação, vergonha de usá-lo em público, medo de que a criança fique “preguiçosa” para falar).
Espero que em breve possamos lidar melhor com esses desafios, por meio da evolução da tecnologia assistiva, maior capacitação dos profissionais e maior conscientização da sociedade como um todo.
Toda pessoa merece ser ouvida.
Perspectives of Speech Language Pathologists Regarding Success versus Abandonment of AAC
Johnson, J. Augmentative and Alternative Communication, June 2006 VOL. 22 (2), pp. 85 – 99