Guia Prático das Ciladas Pedagógicas

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Texto publicado originalmente em 2019


 

Precisamos examinar, à luz da ciência, as frases prontas, os preconceitos e as falácias que permeiam o ambiente educacional e nossa própria formação profissional. Pois geralmente são eles que sabotam a assimilação de práticas inclusivas, tornando a escola um lugar hostil e aversivo para tantos alunos.

O texto de hoje é uma introdução necessária para apontar a inconsistência de algumas ideias amplamente disseminadas nas escolas. Com vocês, o “Guia Prático das Ciladas Pedagógicas”!

1 – “Aqui tratamos igualmente nossos alunos”

O discurso da igualdade é sedutor. Atinge em cheio nosso senso de justiça. 

“Não fazemos diferença entre os alunos”: olha que frase bonita! É como dizer: não discriminamos ninguém. 

“Aqui seu filho será tratado como todos os outros”. Alguns pais de alunos neurodiversos, fragilizados com vivências traumáticas anteriores, chegam a chorar emocionados com a promessa de que o filho será considerado igual aos demais. 

Na verdade, toda essa insistência na igualdade revela um pensamento muito feio: de que a diferença inferioriza.

Somos diferentes uns dos outros. Não melhores, não piores, mas diferentes. Nas habilidades perceptivas, motoras, cognitivas, linguísticas, intelectuais. Nos aspectos relacionados a saúde orgânica e mental. Nas histórias de vida. Em tanta coisa. Tratar igualmente as pessoas é algo terrivelmente injusto. Nossas diferenças não são apenas naturais e humanas: nelas reside a força e a riqueza da nossa espécie. 

2 – “Aqui lidamos com seres humanos, não com diagnósticos”

Mais uma fala sedutora.  Afinal, nenhum indivíduo pode ser reduzido a um diagnóstico. Não somos definidos em função de uma ou outra característica. 

Então, qual é o problema de afirmações como “Não acreditamos em rótulos” ou “Nossos alunos de inclusão são pessoas, não transtornos”? O problema é que revelam completo desconhecimento da função de um diagnóstico. Pra começar, diagnóstico não é sinônimo de doença, como muita gente pensa. Gravidez, por exemplo, é um diagnóstico. 

Dar um diagnóstico significa nomear uma condição que apresenta características próprias, específicas, com o objetivo de garantir a assistência que for necessária. Em termos de saúde pública, diagnósticos servem para coleta de dados estatísticos e alocação de recursos que serão destinados às áreas de pesquisa e assistência. Na escola, servem para direcionar os suportes educacionais necessários e garantir o direito do aluno a eles.

Diagnóstico também não é rótulo. Sabe o que é rótulo? Chamar de mal educada e sem limites a criança hiperativa, de burra a criança disléxica, de preguiçosa e manipuladora a criança com dispraxia, de mimada e “fresca” a criança com alterações sensoriais, e assim por diante.

3 – “Agora está na moda dar diagnósticos pra tudo!”

É, parece que a ciência e o progresso tecnológico lançaram muitas modas nas últimas décadas. Internet, celulares, satélites. Tanta coisa, né? Não foi diferente na medicina. O desenvolvimento das técnicas de biologia molecular, o acesso ao nosso código genético, os exames de imagem que permitem observar o funcionamento das áreas cerebrais ao vivo. Temos estudos científicos seríssimos, multicêntricos, demonstrando evidências robustas sobre a origem neurobiológica dos transtornos de aprendizagem e de outras condições neuropsiquiátricas que tem impacto na aprendizagem. Alunos com essas dificuldades sempre existiram. Antigamente não tinham diagnósticos e sim rótulos (vide item anterior). Eram sumariamente excluídos das oportunidades educacionais. Não devemos mais aceitar isso.

Viva a moda dos diagnósticos!

4 – “Mas ele ainda é muito novinho! Vamos dar tempo ao tempo, esperar pra ver o quanto se desenvolve”

O desenvolvimento neurológico do ser humano é um processo longo e complexo, regido pela programação genética e sujeito a influências diversas do meio ambiente. Cada etapa tem suas particularidades. Existem variações individuais nestas etapas, mas sempre que algo não está ocorrendo conforme o esperado, devemos instituir medidas para estimular o desenvolvimento das habilidades em atraso e oferecer o suporte necessário. Independente de qualquer investigação. Se um aluno demonstra dificuldade na alfabetização, por exemplo, lançar mão de exercícios para ampliar a consciência fonológica e recursos multissensoriais para a apresentação dos símbolos gráficos só pode trazer benefícios, independente de ser um caso de dislexia ou não. O contrário pode representar a perda de um tempo precioso para a criança – em alguns casos, com sérias consequências para a vida dela. Intervenção precoce traz benefícios em qualquer condição neuropsiquiátrica. 

5 – “Mas, desse jeito, o aluno vai ficar mal acostumado” 

Essa é uma preocupação recorrente dos educadores. Que as adaptações pedagógicas instituídas tornem o aluno dependente e preguiçoso. 

Bom, eu e a neurociência estamos aqui para garantir que isso não acontece. Sabe por que? Nosso cérebro é programado para a busca do sucesso. Todos nós vibramos quando conseguimos fazer bem alguma coisa. Adoramos elogios, queremos ser reconhecidos e valorizados. Adaptações não são privilégios, como muita gente pensa. Tenho comprovado, repetidamente, que os alunos só aceitam adaptações enquanto precisam delas. Aliás, na nossa cultura, que inferioriza a diferença, muitas vezes acontece o contrário: alunos que não aceitam adaptações necessárias para que suas dificuldades não sejam expostas, para não ficarem vulneráveis perante os colegas. Muitos comportamentos disruptivos também se originam disso. É mais suportável para a autoestima da criança ou adolescente ser considerado o “bagunceiro”, o “rebelde” que “aquele que não consegue aprender”.

Não tenham receio: os alunos são os primeiros a sinalizar quando um suporte torna-se desnecessário.

6 – “Aluno de inclusão é aluno café com leite”

O fato de ter qualquer transtorno de aprendizagem ou condição neuropsiquiátrica não torna ninguém incapaz. Subestimar o potencial desses alunos é uma postura bastante frequente, por puro desconhecimento e despreparo dos professores. Infelizmente. Muitas vezes, alunos com um potencial gigantesco – mesmo aqueles com superdotação e altas habilidades – tem desempenhos acadêmicos pobres em função do engessamento do nosso sistema de ensino. 

7 – “Não estudei pra isso, não sou obrigado a lidar com alunos assim”

Sou totalmente solidária aos professores na sensação de desamparo que sentem ao enfrentar situações para as quais não foram preparados. Faz-se urgente a revisão da grade curricular dos cursos de graduação e a criação de núcleos para apoiar os professores dentro das escolas. Temos necessidade de muitas mudanças no nosso sistema educacional.

Porém, a autocrítica também se faz necessária. Além da capacitação, precisamos também de atitudes: abertura, disponibilidade, boa vontade. Lidar com seres humanos exige capacidade de adaptação e flexibilidade. Não é algo para quem gosta de padronização e produção em série.

Sinto dizer, mas o professor é, sim, obrigado a lidar com todos os tipos de alunos. Não existe transmissão passiva do conhecimento – e nem precisaríamos de professor, caso fosse assim, já que o conteúdo da disciplina está disponível por todo lado: livros, apostilas, internet. A função do professor é justamente mediar a aprendizagem do aluno, da maneira que for mais eficaz para ele.

8 – “Precisa trazer um laudo. Não posso fazer nada sem um laudo”

Não é bem assim. O laudo (que não se chama oficialmente laudo e sim relatório médico) serve para comprovar que o aluno passou por uma avaliação profissional. No Brasil, é exigido que haja um diagnóstico médico com o respectivo código da CID (sistema de classificação vigente no país) para que o aluno possa ter alguns direitos garantidos por lei. Algumas vezes, o relatório também traz orientações consideradas importantes para aquele aluno. Relatórios de profissionais de outras áreas (fonoaudiólogo, psicólogo, terapeuta ocupacional) são muito importantes em alguns casos. A parceria com os terapeutas que cuidam de um aluno pode ser muito rica para todos e deve ser aproveitada.

Mas a escola tem total autonomia para garantir suportes educacionais para qualquer aluno, incluindo aqueles que não receberam qualquer tipo de avaliação (Nota técnica MEC 04/2014). Considerando que em nosso país há escassez de serviços e profissionais habilitados para realizar uma boa avaliação e que algumas famílias apresentam resistência em buscar ajuda, é fundamental que haja essa autonomia, pois a criança não deve ser punida pela falta de um diagnóstico.

E só um lembrete: relatórios não precisam ser renovados sem que haja uma boa justificativa.

9 – “Até quando vou ter que manter essas adaptações?”

Simples: até quando forem necessárias e favoráveis para o aprendizado do aluno. Para sempre, em alguns casos. Não é incomum (principalmente no início de um novo ano letivo) que a escola resolva retirar as adaptações para fazer um “teste”. Não há lógica alguma nisso, só demonstra a falta de compreensão do que está sendo feito.

10 – “O que vou falar para os outros alunos?”

Diga que as pessoas são diferentes e têm necessidades diferentes. Alguns precisam de óculos, outros de próteses, outros ainda de uma maneira diferente de realizar as coisas. Explique que é okay ser diferente. Que todos tem direito a receber os apoios que forem necessários e que as pessoas devem ser valorizadas pelo que são. 

Diga ainda – estufando o peito – que estamos lutando por um mundo onde todos tenham seu espaço.

CRM 78.619/SP

Dra. Raquel Del Monde

É médica formada pela USP – RP (1993), com residência em Pediatria pela Unicamp (1996) e Treinamento em Psiquiatria da Infância e Adolescência também pela Unicamp (2013). Viu sua carreira mudar quando seu filho mais velho recebeu o diagnóstico de autismo em 2006. Desde então, vem se dedicando exclusivamente ao atendimento de pessoas neurodiversas, ao aprofundamento nas questões da neurodiversidade, e tornou-se uma ativista da luta anti-capacitista.