O fascínio de muitas crianças autistas por letras é algo que chama muito a atenção de todos que convivem com elas e também dos pesquisadores da área do neurodesenvolvimento.
Há relatos de crianças autistas que são capazes de ler aos 18 meses de idade. Porém, a precocidade não é o único aspecto que desperta interesse. Há evidências de que todo o processo de aquisição da linguagem verbal (oral e escrita) ocorre de maneira muito diferente no cérebro das crianças autistas em relação ao que conhecemos nos neurotípicos. Entender melhor esse processo tão particular é de suma importância para que possamos oferecer intervenções terapêuticas e pedagógicas apropriadas e favoráveis. Vamos um pouco mais além: na busca de um modelo cognitivo que explique a hiperlexia, a neurociência vai encontrando pistas de como o cérebro autista percebe e elabora outras informações, de forma consistente com o que sabemos atualmente a respeito da conectividade neuronal no autismo. É certamente uma perspectiva que nos desafia a expandir nossos conceitos.
A criança hiperléxica não compreende o que lê?
Particularmente, essa noção geral sempre me incomodou. Minha vivência em consultório sugeria que talvez o problema em aferir a compreensão da leitura pudesse estar na inadequação de se utilizar um procedimento padrão para alguém com limitações na área da comunicação. Fico aliviada de ver que tem gente séria disposta a desvendar essa e outras questões.
Convido vocês agora a me acompanhar em uma revisão do assunto, com base num primoroso artigo de pesquisadores da Universidade de Montreal. Fiz um resumo, destacando os pontos que considerei mais interessantes. Algumas informações técnicas podem não ser do interesse de todos, mas ainda assim resolvi mantê-las para os profissionais que também acompanham a página.
O termo hiperlexia foi cunhado em 1967, mas há menções ao perfil hiperléxico desde 1918
Chamamos de hiperlexia à aquisição precoce de habilidades de leitura, com acentuada preferência por material escrito. Outras características descritas envolvem a competência de leitura avançada em relação à compreensão/ nível de inteligência e a coexistência de um transtorno do neurodesenvolvimento. O termo hiperlexia foi cunhado em 1967, mas há menções ao perfil hiperléxico desde 1918.
Com frequência, a hiperlexia é mencionada como uma das possíveis habilidades atípicas que ocorrem no autismo. Hans Asperger descreveu crianças que aprendiam a ler com grande facilidade, apesar de serem “difíceis de ensinar”.
Não temos informações seguras sobre a prevalência de hiperlexia na população geral. Dados disponíveis sobre a prevalência no autismo devem-se ao fato da hiperlexia geralmente anteceder o diagnóstico de autismo e ao crescente interesse nesta relação. A estimativa variou de 6 a 20%, dependendo da rigidez dos critérios utilizados para a definição de hiperlexia. Dos hiperléxicos autistas, 79% eram do sexo masculino, a maioria com inteligência média avaliada por testes não verbais (consistente com autismo não-sindrômico) e atraso de fala. Foram encontrados relatos de hiperlexia também em síndromes genéticas e outras condições do neurodesenvolvimento, porém 84% dos casos incluídos nesta revisão tinham diagnóstico de autismo ou características autísticas.
O artigo também ofereceu uma revisão do conhecimento atual da neurociência acerca dos processos cognitivos envolvidos na aquisição da leitura dentro do desenvolvimento típico e como estes ocorrem nos hiperléxicos.
A leitura é uma habilidade complexa que envolve três principais sistemas neurais:
- Reconhecimento de palavras baseadas em suas características visuais (córtex occipito-temporal): nível de processamento visual que extrai informação invariável da estrutura visual das palavras para construir uma representação (independente das variações de fonte, tamanho, cor e localização no campo visual). A ativação desta área é sensível a regularidade ortográfica (especialização funcional moldada de acordo com propriedades linguísticas arbitrárias, determinadas pela cultura – ou seja, moldada pela experiência da leitura).
- Conversão de grafemas (informação linguística visual) a fonema (informação linguística oral), região parieto-temporal. Rota lexical (biblioteca ortográfica do leitor, requer conhecimento prévio da palavra) e sublexical (mapeia palavra da esquerda para a direita, associando cada letra ao seu som correspondente). Leitores experientes usam as duas, alternando-as de acordo com o texto.
- Acesso ao léxico e significados de palavras e sentenças. O acesso ao significado ocorre quando a decodificação da escrita atinge conhecimento semântico previamente adquirido (grande rede de sistemas inter-relacionados no hemisfério esquerdo). Para o leitor iniciante o acesso semântico é limitado pelo grande esforço na decodificação. Nas crianças típicas, há forte correlação entre precisão e compreensão da leitura.
Esses sistemas não funcionam em sequências fixas – nem em relação aos períodos de desenvolvimento, nem no momento da leitura – e sim de forma paralela.
Como ocorre este processo no desenvolvimento típico?
Aprender a ler significa adquirir habilidades que permitam à criança identificar e entender palavras escritas. A criança progride por meio de estágios sucessivos definidos por diferentes estratégias de decodificação, em experiências heterogêneas. As habilidades de linguagem oral aparecem como um dos mais importantes fatores para a leitura nos neurotípicos. Primeiro associam a escrita com as palavras que escutam, depois aprendem a associação entre som e letra. Por volta dos 5 anos, passam a acessar explicitamente a associação entre símbolos gráficos que compões o alfabeto e os sons da fala e conhecem as sílabas mais comuns. Em torno dos 7 anos, adquirem competência para decodificar palavras novas, passando para padrões ortográficos cada vez mais complexos. No decorrer deste processo, as crianças concentram-se primeiro em decodificar palavras individuais, para depois entender o significado das sentenças, até tornarem-se leitores fluentes e alcançar a interpretação de elementos implícitos do texto.
Como ocorre este processo na hiperlexia autística?
- Percepção visual: há extensa literatura sobre performance perceptual aumentada no autismo, tanto para tarefas estáticas quanto dinâmicas. Autistas possuem capacidade superior de processar simultaneamente amplas matrizes de informação visual e campos visuais mais amplos e apresentam também melhor desempenho que neurotípicos em detecção e manipulação de padrões, busca visual, rotação mental e testes de figuras escondidas, bem como tarefas de integração espacial. Essas habilidades podem expandir-se para a leitura hiperléxica, na qual as palavras são percebidas como padrões visuais complexos (abordagem configuracional ao invés de análise serial de letras individuais). Estudos de RNM funcionais mostraram maior ativação de regiões envolvidas no processamento visual em autistas. Há evidências de que essas regiões sejam mais independentes das áreas envolvidas no processamento fonológico e léxico-semântico em relação ao que ocorre nas crianças típicas. Outras diferenças observadas incluem menor ativação das regiões frontais nos autistas (associadas às funções executivas) e ativação diferenciada dos hemisférios cerebrais (lateralização direita – como tem sido relatado em outras habilidades savant).
- Conversão grafema-fonema: testes indicam acesso à memória das palavras inteiras, bem como a coexistênca de estratégias de decodificar letra a letra quando necessário (leitura de pseudopalavras). Pode haver habilidade hiperléxica em mais de uma língua.
- Acesso semântico: hiperléxicos tem mais precisão na leitura de pseudopalavras, mesmo na ausência de compreensão. Estudos mostram que autistas dependem mais de proximidade contextual da informação relevante para auxiliá-los na compreensão do texto (que varia de acordo com a natureza do texto, com melhor desempenho nos casos que incluem seus interesses). Sentenças irrelevantes em meio ao texto afetam mais sua compreensão do que de neurotípicos. As áreas cerebrais que envolvem processamento semântico são menos ativadas durante a leitura dos autistas, em contraste com o que acontece nos neurotípicos. Entretanto, à medida que a leitura hiperléxica evolui, pode haver acesso progressivo
Aquisição da leitura em crianças hiperléxicas
Na hiperlexia, as habilidades de leitura são adquiridas na ausência de instrução e não podem ser ensinadas da maneira convencional, o que indica mecanismos essencialmente diferentes do padrão. Na maior parte das vezes, o interesse por leitura persiste ao longo do tempo. Alguns estudos documentaram a emergência da fala após o aparecimento da leitura e, algumas vezes, aparentemente mediada por esta. De fato, a hiperlexia parece desempenhar um papel no desenvolvimento da linguagem oral, expressiva e receptiva e na comunicação em geral. Mensagens escritas podem facilitar as intervenções terapêuticas.
A presença de hiperlexia em cerca de 10 a 20% dos autistas é um fato que merece maiores investigações, podendo representar a variante extrema de um perfil cognitivo mais amplo. Aparentemente, todo o processo de aquisição da leitura é diferente na hiperlexia, o que é consistente com o modelo que propõe que a percepção autística tem papel decisivo nas operações cognitivas mais complexas. A detecção de padrões, de informações que se repetem de determinadas maneiras, também parece mediar o aprendizado por associações que observamos nos autistas.
Da mesma forma que a ecolalia constitui um estágio não comunicativo na direção do acesso à linguagem, a hiperlexia pode ser mais que leitura sem significado, não comunicativa. Pode ser um passo em direção da compreensão da comunicação escrita e oral. Este entendimento é essencial para adaptações pedagógicas e educacionais. Se a hiperexia é parte da sequência de aprendizagem da linguagem de crianças autistas, tentativas de substituí-la por métodos padrões não serão tão bem sucedidas. Devemos estar alertas para intervenções que propõem eliminação de interesses e comportamentos restritos como se fossem impeditivos para a aprendizagem apropriada.
Intervenções
O papel das intervenções deve ser o de assegurar que o desenvolvimento da hiperlexia resulte em benefícios adaptativos, o que não necessariamente coincide com a redução das características autísticas. Pode ser vantajoso seguir a sequência própria do desenvolvimento autista, oferecendo-se à criança estímulos nos quais ela demonstra interesse espontâneo e maior capacidade de processar.