Texto originalmente publicado em 2019
Eu me lembro perfeitamente daquela sensação de assombro e deslumbramento que senti na primeira vez que presenciei a manifestação de uma aptidão extraordinária em um autista.
Lembro perfeitamente porque ainda é a mesma sensação que experimento até hoje quando vejo uma criança com todas as limitações características do autismo exibir alguma habilidade incomum – seja a precocidade de leitura e escrita, a facilidade na aprendizagem de outras línguas, o raciocínio sofisticado para encontrar solução para um problema ou para cálculos matemáticos complexos, a memória prodigiosa ou um talento excepcional em alguma área.
Mas, ao contrário do que muitos possam pensar, meu fascínio não tem só a ver com aquela admiração que a gente costuma sentir diante de um desempenho superior. Acontece que o reconhecimento dessa mistura intrincada de déficits e habilidades marcou o início da minha jornada pra entender melhor essa coisa toda da aprendizagem. A constatação da existência de circuitos cerebrais diferentes do padrão – o que chamamos hoje de configuração cerebral atípica – me fez enxergar um mundo de possibilidades. Não só em relação ao processamento de informações singular dos autistas, mas também das pessoas com TDAH, dislexia, discalculia e déficits diversos.
Essa nova perspectiva me permitiu rever e questionar as práticas educacionais tradicionais, que são definidas pelo conhecimento que temos acerca do “desenvolvimento normal”. Todos sabemos que o uso mecanizado e engessado de tais práticas não favorece pessoas com diferentes perfis de aprendizagem, mesmo que neurotípicas. A elaboração de estratégias de ensino diferenciadas para populações neurodiversas (desde o sistema braile para deficientes visuais até a tecnologia assistiva e os aplicativos educacionais que estão surgindo) sempre esteve necessariamente vinculada à nossa disposição para procurar caminhos alternativos – que, aliás, são sinalizados pelos próprios interessados.
Pra quem, como eu, tem o privilégio de apreciar esses circuitos cerebrais atípicos em pleno funcionamento, ao vivo e a cores, o deslumbramento vira parte da rotina.
Há poucos dias, a diversão ficou por conta de um pequeno autista de 5 anos, que ainda não fala, não responde a chamados e que passa uma boa parte do tempo enfileirando carrinhos, sem brincar simbólico. Então, quando mostrei um livro de grandes letras coloridas (depois de um esforço razoável para conseguir sua atenção), ele alegremente passou a me trazer as figuras de animais que começavam com as letras que eu apontava. Sem nenhum auxílio ou dica. Identificava, inclusive, vários animais que começavam com a mesma letra, de uma só vez. E quando cheguei na letra R, procurei rapidamente pela sala, não achei nada e falei “Que pena, não tenho nenhum animal com a letra R aqui”. Ele olhou bem nos meus olhos, virou-se rapidamente e em um segundo apareceu com um rinoceronte – só faltou esfregar na minha cara! Aposto que soltou um “Dã” mentalmente…
Tenho um arquivo vivo de exemplos que demonstram a importância do atendimento pedagógico individualizado. Dar oportunidade para que todos aprendam beneficia toda a sociedade.