Não é à toa que sou apaixonada pela neurociência.
A cada descoberta, é como se estivéssemos abrindo janelas numa casa escura: à medida que a luz entra, podemos distinguir os móveis, os objetos, abrir gavetas, ler mensagens. Ao iluminar cada aspecto do comportamento humano, a neurociência nos permite enxergar as camadas que o compõem e perceber como são complexas suas relações com o conjunto todo.
Já ouviu aquela frase: “Autistas não têm empatia”? Muitas pessoas, incluindo profissionais da saúde mental, sustentam essa afirmação até hoje. Na contramão, as experiências de vida de muitos autistas não só desmentem essa crença, como sugerem que alguns deles percebem as emoções do outro de forma muito intensa. Nos últimos anos, crescem os debates sobre o que passamos a chamar de hiperempatia nos autistas.
Afinal, o que sabemos sobre isso? Senta, pega um café ou um chá, porque essa conversa é boa.
O que é empatia?
A definição popular traduz empatia como a capacidade de colocar-se no lugar de outra pessoa, mas vamos ver neste texto que este é um conceito multidimensional. Empatia é o termo que conferimos ao conjunto de habilidades que nos permite compartilhar a experiência afetiva de outra pessoa (consciente de que é de outra pessoa, não a própria) e que molda todas as nossas interações sociais.
Seres humanos são altamente sociais. Passamos a maior parte das nossas vidas engajados em comportamentos relacionados a motivações sociais. A empatia é o pilar que sustenta todo o processo de tomada de decisões relacionadas a esses comportamentos.
Empatia cognitiva e empatia emocional
Para os estudiosos, logo ficou claro que o conceito abrange aspectos cognitivos e emocionais. Por um tempo, falou-se em empatia cognitiva e empatia emocional como se fossem fenômenos totalmente separados. Hoje sabemos que são construtos distintos, que envolvem circuitos neurológicos diferentes, mas que se associam para processar informações importantes para esse processo como um todo.
Só para começar a entender todas as camadas da empatia, vamos usar um exemplo simples, relacionado a uma experiência primitiva: a dor física.
Imagine uma situação em que você sofra um acidente em casa que resulte em um ferimento profundo na perna. Além da ativação do circuito neurológico que processa a sensação da lesão (e que faz com que você seja capaz de acessar informações como localização e intensidade da dor), ocorre ativação de outros circuitos cerebrais, entre eles aquele que processa a experiência afetiva (afetiva = emocional) da dor. Ao ver uma pessoa sofrer uma lesão semelhante, seu cérebro não recebe a informação da dor em si, mas os circuitos da experiência afetiva da dor são ativados, de modo que você consegue “sentir” o sofrimento da pessoa, solidariza-se com ela, toma atitudes imediatas para aliviar o padecimento dela. Porém, a depender do contexto, seu sentimento pode mudar (se a pessoa que se machucou era um assaltante que estava te ameaçando com uma faca e caiu; se você está assistindo um filme e sabe que o ferimento não é real; etc.).
Ou seja, a empatia é resultante do processamento de vários tipos de informação, utilizando circuitos neurológicos de diferentes áreas do cérebro.
Obviamente, temos sentimentos bem mais sofisticados que a dor física. Ser capaz de “se colocar no lugar do outro” demanda integração tanto mais complexa quanto for a situação em si.
Vamos por partes.
Empatia cognitiva
A empatia cognitiva abrange dois elementos:
- Tomada de perspectiva: é o que conhecemos por Teoria da Mente ou mentalização. A capacidade de reconhecer os estados mentais de outras pessoas (seus sentimentos, interesses, expectativas e intenções). Coisas como identificar quando uma pessoa quer falar em meio a um grupo, quando seu filho te agrada para pedir algo, quando sua amiga muda o modo de agir diante de alguém de quem não gosta. Também as inferências que fazemos sobre valores e crenças das pessoas, com base em pistas de comunicação verbal e não verbal.
- Simulação: a “encenação mental” para prever como uma pessoa se sentiria em determinada situação. É a habilidade que usamos quando temos que dar uma notícia ruim para alguém, por exemplo, considerando como vai impactar seu estado mental. Pode haver ativação de regiões diferentes do cérebro se a pessoa for considerada semelhante a nós em suas reações ou não.
Empatia emocional
A empatia emocional é composta de três elementos:
- Contágio emocional: como nossa experiência afetiva é influenciada em ambientes de forte conotação emocional. A pessoa é invadida pela emoção predominante em determinada circunstância. Você pode ser completamente indiferente a esportes e ainda assim, vibrar muito e chorar de alegria assistindo uma final de Copa do Mundo com amigos. Ou ainda ser tomado pela tristeza ao ouvir relatos de sobreviventes de uma tragédia.
- ️ Responsividade periférica: refere-se ao nosso envolvimento com sentimentos de sujeitos com os quais não temos nenhum tipo de relação, como personagens de filmes ou livros.
- Responsividade proximal: envolvimento com sentimentos de pessoas de quem gostamos.
Dada a quantidade de circuitos neurais envolvidas em todos esses aspectos, não chega a surpreender que a nossa bagagem de vida – ou seja, a soma das nossas vivências e conhecimentos – também influencia como experimentamos a empatia.
Sim, valores morais, traumas, percepção de ameaça ou expectativa de ganhos próprios podem alterar essa experiência.
Imagine que uma pessoa das suas relações acabou de ganhar a Mega Sena. Sentir-se genuinamente feliz por ela pode depender de muitas coisas: se for uma pessoa íntegra, batalhadora e generosa; ou o oposto, mau caráter, folgada e mesquinha; se for um parente próximo que tenha finalmente a possibilidade de ajudar você em uma necessidade premente; se for um desafeto que pode usar a riqueza pra te humilhar; etc.
Por isso mesmo falamos em “camadas” da empatia.
Autismo e empatia
Pesquisas recentes mostram um perfil atípico de empatia em pessoas autistas.
São dados bastante compatíveis com o que observamos na prática. Há evidências de menor empatia cognitiva e, por outro lado, respostas diminuídas, semelhantes aos neurotípicos ou aumentadas no que se refere à empatia emocional.
Alguns familiares se preocupam com reações pouco empáticas, frias mesmo, de seus filhos em relação aos sentimentos de outras pessoas, mesmo em cenários de grande sofrimento. Uma mãe relatou recentemente que o filho não demonstrou nenhuma preocupação com conhecidos contaminados pelo coronavírus. Ao mesmo tempo, alguns autistas chegam a evitar determinadas situações emocionais por não suportarem o peso da dor do outro. Perdi as contas dos relatos de pacientes (incluindo alguns não oralizados e parecendo alheios ao ambiente) que choraram por horas ao assistir Rei Leão. Um garoto se prontificou a doar o coração para um conhecido da família ao saber que ele precisava de transplante. Outros ainda tem reações que parecem contraditórias: agressivos e até cruéis em determinados contextos e muito carinhosos em outros.
Não é fácil para as pessoas em geral compreender que a heterogeneidade da condição também se reflete na empatia e as pesquisas identificam vários pontos a serem explorados.
Resultados preliminares indicam alguns dos fatores que parecem influenciar essas variações: nível de atenção, dificuldades na comunicação e repertório de vivências estão entre os mais previsíveis. Há um interesse crescente na influência da alexitimia (condição subclínica, presente em 50% dos autistas, definida pela dificuldade em identificar e descrever os próprios sentimentos).
Uma coisa é certa: quanto mais soubermos, maior será a nossa capacidade de oferecer ferramentas adequadas.
The anatomy of empathy: Vicarious experience and disorders of social cognition
Lockwood, P. Behavioural Brain Research. 2016 Sep 15; 311: 255–266
The neural basis of mentalizing
Frith, CD. Neuron 2006 May 18;50(4):531-4
Trait Autism is a Better Predictor of Empathy than Alexithymia
Punit, S. Journal of Autism and Developmental Disorders 2019; 49(10): 3956–3964.