Medidas de inteligência

Desde meus primeiros contatos com autistas, eu sabia que havia alguma coisa errada com as informações que tínhamos sobre inteligência e autismo.

“Setenta por cento dos autistas tem deficiência intelectual”

“Memorização mecânica”

“Ilhas de habilidade”

“Leitura sem significado”

Sem mencionar o descrédito sumário em relação à capacidade dos autistas não-oralizados.

É difícil conciliar essas informações com as formas surpreendentes com que muitos autistas demonstram a assimilação de informações. E não estou falando aqui dos pequenos gênios, dos superdotados (já falamos em outro texto sobre Dupla Excepcionalidade), e sim como alguém que presencia no dia a dia “sacadas” incríveis de crianças que parecem alheias ao ambiente e que já foi vítima de pegadinhas de um garoto que nunca falou uma palavra!

É provável que tanto a deficiência intelectual quanto a superdotação sejam mais frequentes na população neuroatípica do que na população geral.

Mas, além desses extremos da curva, fica claro que existem diferenças qualitativas no funcionamento cognitivo do TEA. Com o passar do tempo, passei a acalentar uma concepção de inteligência autística, como sendo um conjunto de atributos resultante de um processamento de informações fora dos padrões que costumamos validar. Da mesma forma que acontece na aquisição da leitura nos autistas hiperléxicos. 

A cognição do autismo

Muitos pesquisadores ao redor do mundo se dedicam a ampliar nosso entendimento da cognição do autismo. Uma dessas equipes, em Montreal, traz considerações muito interessantes sobre o uso dos instrumentos tradicionalmente utilizados na avaliação intelectual e como eles podem levar a resultados imprecisos e equivocados ao não levar em conta as peculiaridades do cérebro autista

Teste de inteligência

A nova classificação DSM-5 demanda a especificação da presença ou ausência de deficiência intelectual. Na prática, a determinação do potencial intelectual é dada com base no resultado de baterias de testes, sendo a escala Wechsler (atualmente em sua quarta versão – WISC IV) a mais utilizada. Entretanto, o próprio texto do manual alerta para a necessidade de compreensão do perfil intelectual (não linear) das pessoas no espectro do autismo.

O estudo de Montreal mostra que o conteúdo e estrutura do WISC frequentemente subestimam a capacidade dos autistas e por razões não relacionadas ao seu potencial intelectual: há influências do aplicador, subtestes que avaliam habilidades que dependem de experiência ou de habilidades específicas (verbais, motoras finas – que, apesar de importantes, não necessariamente refletem a inteligência). A escolha do instrumento e interpretação dos resultados, portanto, são fundamentais para uma avaliação fidedigna.

A comparação dos resultados obtidos pelo WISC e por outro instrumento (Matrizes Progressivas de Raven – standard) mostra diferenças significativas, até mesmo dramáticas. O Raven é um teste de formato único complexo, que avalia ampla gama de habilidades, com particularidades mais adequadas à avaliação de autistas: mínima necessidade de instrução e liberdade para usar recursos cognitivos relevantes para eles (especialmente perceptuais). É um teste que parece capturar melhor as habilidades autísticas de processamento visual e raciocínio abstrato. A RNM funcional confirma que autistas são mais rápidos e utilizam mais aptidões perceptuais em itens difíceis e complexos do que os neurotípicos neste teste. As diferenças observadas constituem um dado de extrema relevância para a abordagem terapêutica, além de sugerir um potencial oculto que precisa ser explorado na abordagem educacional.

O estudo em questão avaliou autistas com déficits de linguagem, sem síndromes genéticas associadas. A discrepância do desempenho entre os diferentes instrumentos (WISC- IV e Raven) chega a quase 40 pontos percentuais para eles – e apenas de 2 pontos percentuais para crianças típicas.

Traduzindo: a possibilidade de ter um falso diagnóstico de deficiência intelectual aumenta muito quando a avaliação não é feita de forma adequada.

Considerando as diferenças do processo de avaliação do potencial intelectual dos autistas em relação aos neurotípicos, é imprescindível que o psicólogo que conduz a avaliação neuropsicológica – responsável pela escolha dos instrumentos e interpretação dos resultados – tenha um amplo conhecimento da área.


Does WISC-IV Underestimate the Intelligence of Autistic Children? 

Nader, A.M. Journal of Autism and Developmental Disorders, 2016 May;46(5):1582-9

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CRM 78.619/SP

Dra. Raquel Del Monde

É médica formada pela USP – RP (1993), com residência em Pediatria pela Unicamp (1996) e Treinamento em Psiquiatria da Infância e Adolescência também pela Unicamp (2013). Viu sua carreira mudar quando seu filho mais velho recebeu o diagnóstico de autismo em 2006. Desde então, vem se dedicando exclusivamente ao atendimento de pessoas neurodiversas, ao aprofundamento nas questões da neurodiversidade, e tornou-se uma ativista da luta anti-capacitista.