Tem certas coisas no autismo que não constam nos livros. Certos detalhes e particularidades interessantes que só conhece quem convive de perto. No meio deste amplo espectro – no qual não cabem generalizações – alguns autistas, em geral na pré-adolescência, engajam em pensamentos bem imaginativos. E nos contam histórias incríveis.
Histórias elaboradas, com muitos pormenores. Aventura, suspense, animais selvagens, heróis, tesouros, criaturas sobrenaturais, fenômenos da natureza, fatos secretos.
Com um porém: não são histórias reais. Nunca aconteceram. Alguns trechos nem poderiam acontecer, são obviamente fantasiosos. Quando confrontados com a carência de plausibilidade das narrativas, os autores batem o pé e insistem na veracidade delas. Nenhum argumento parece surtir efeito. Isso gera preocupação para os familiares e profissionais envolvidos.
Algumas vezes, os pais chegam a sofrer com a possibilidade de esquizofrenia, de tão recorrentes e bizarros que são os relatos (claro que sempre vale uma boa conversa com um profissional da área, mas geralmente não é nada disso). Vez ou outra, a preocupação envolve conotação religiosa e possessão por espíritos.
Consequências reais
Não raramente, essas crianças são taxadas de mentirosas em casa e na escola. São deixadas de lado pelos colegas ou tornam-se alvos de censuras e repreensões dos adultos. Fico bastante incomodada com esse entendimento sobre esta questão, porque, quando usamos a palavra “mentira”, passamos a ideia de algo intencionalmente arquitetado para ludibriar ou prejudicar pessoas e não é isso que vejo acontecer.
Ter a reputação de mentiroso é tudo que essas crianças não precisam.
As histórias fantasiosas parecem atender a um desejo da criança
Autistas podem ter uma intensa atividade mental, com seu modo próprio de processar as informações do ambiente e isso pode ser externalizado de maneiras não convencionais.
Existem autistas que falam sozinhos. Muito. Às vezes ao mesmo tempo que andam de um lado para outro, movimentam partes do corpo ou usam algum objeto. É uma maneira que encontram de se organizar ou de “assimilar” situações vivenciadas no dia a dia: repetem diálogos, reencenam alguma passagem do seu dia, “treinam” reações, respostas e abordagens sociais.
Alguns tem amigos imaginários, tão reais que ganham nomes e características próprias. Acompanham a criança ou adolescente nas refeições, na escola, em diversos lugares. Ocupam o lugar de um amigo: conversam, brincam, brigam, até discutem.
As histórias fantasiosas que mencionei no início do texto também parecem atender a uma necessidade ou desejo da criança. Muitas vezes são baseadas em algum desenho, filme, roteiro de videogame ou mesmo relato de YouTuber. Nelas, a criança se sente liberta para acessar um cenário que representa o mundo como gostaria que ele fosse, no qual se sente forte e poderosa. A mesma coisa acontece com planos mirabolantes de alguns para o futuro, às vezes completamente desconectados de dados da realidade. Há um grande prazer envolvido.
Somado a isso, temos a dificuldade de enxergar a perspectiva do outro (Déficit da Teoria da Mente) e de inferir as consequências sociais que podem advir, além da ausência de malícia.
Cabe aos adultos agir com delicadeza e empatia, reconhecendo a motivação da criança e apontando pouco a pouco as implicações dessas histórias.