O uso de medicação no autismo é um daqueles assuntos que nunca se esgotam.
Pior que isso: é um daqueles assuntos a respeito do qual todo mundo tem uma sólida opinião formada – geralmente baseada em experiências exclusivamente pessoais, achismos ou em “ouvi dizer”.
Então vamos conversar sobre as poucas afirmações que realmente podemos fazer sem nenhum medo de errar.
Não existe “remédio para autismo”
Não custa lembrar: não há cura para o que não é doença. Não existe um único medicamento específico para o tratamento do TEA.
O autismo é uma condição do neurodesenvolvimento, que resulta de uma configuração cerebral diferente. Sim, existem situações em que alguns prejuízos decorrentes desses circuitos neuronais atípicos podem ser melhorados com o uso de medicação, mas isso não significa absolutamente que estamos “tratando” ou “curando” o autismo e sim, buscando uma melhor qualidade de vida para o autista. Da mesma forma que fazemos para um neurotípico com depressão, por exemplo.
Cada caso é um caso
Vou repetir: CADA CASO É UM CASO!
Não sou de usar caixa alta em nenhum texto, mas gostaria de poder gravar essas palavras na mente das pessoas. Cada indivíduo tem um perfil totalmente diferente dos outros (orgânico, metabólico, de dificuldades e potencialidades etc, etc). Se isso já implica que mesmo as abordagens terapêuticas e educacionais precisam ser individualizadas, imagine então o uso de medicamentos…
Não há uma regra para isso. Alguns autistas jamais vão precisar de medicamentos, outros precisarão de mais de um medicamento e em mais de uma época de suas vidas. A experiência de uns não serve para outros. É irracional basear uma decisão tão pessoal como essa em vivências alheias.
Relação risco-benefício
Tudo se resume à famosa “relação risco-benefício”, fundamental em qualquer circunstância da medicina em que se cogita o uso de medicamento. O bebê está febril. Qual é a temperatura? Vamos dar um banho demorado primeiro. Ah, ele já teve convulsão febril? Precisa dar o antitérmico ao primeiro sinal de febre. Ele já teve hipotermia com o uso de antitérmico? E assim por diante.
A adolescente vai tomar anticoncepcional. O ciclo dela é desregulado? Tem vida sexual ativa? Ela tem acne, sofre com TPM, tem enxaqueca, tem antecedente familiar de trombose?
São inúmeras variáveis, mas vou parar por aqui… Acho que já deu pra ter uma ideia.
Relação risco-benefício é quando usamos aquela balança imaginária: de um lado, os efeitos desejados, aquilo que pretendemos com o medicamento. Do outro, os efeitos colaterais e os riscos que muitas vezes assumimos com um tratamento farmacológico. A opção pelo tratamento farmacológico tem que passar pela análise dos fatores envolvidos nesta relação. Por isso é uma decisão que deve ser discutida entre o paciente e/ou seus familiares e um médico de confiança. Só então, prevalecendo o lado positivo, deve ser instituído o tratamento, com responsabilidade, ajustado conforme a necessidade de cada um e reavaliado periodicamente.
Quando o uso da medicação pode ser benéfico?
Para o propósito do nosso texto, cabe explorarmos um pouco os cenários em que ocorrem as indicações de medicamentos.
Creio não haver muita polêmica quando o uso de medicação é voltado ao tratamento de condições que podem estar associadas ao autismo (também chamadas de comorbidades), como epilepsia, depressão, ansiedade e transtornos de humor.
Já em outras situações o uso de medicação merece uma reflexão maior, pautada pelo bom senso. Vejo duas questões fundamentais a ser consideradas na definição dos objetivos (alvos) de um tratamento farmacológico:
- Situações que podem eventualmente ser melhoradas com estratégias ambientais – comunicação efetiva, estruturação do ambiente, uso de sinalização concreta e visual, intervalos sensoriais, redução de estressores, suporte individualizado e emprego de material diferenciado são alguns dos recursos que devem ser oferecidos, de acordo com o perfil da criança, e que podem melhorar queixas como agitação, falta de atenção e agressividade (sugiro a leitura de três mini-textos que publicamos aqui na página, falando dos fatores que podem estar por trás do comportamento agressivo). Em alguns casos, um bom suporte terapêutico pode tornar desnecessário o uso do medicamento.
- A questão da normalização – ou seja, a busca da eliminação de características visivelmente autísticas, para que a pessoa se aproxime de um “comportamento normal”. Vamos usar um dos exemplos mais frequentes: os stims (também conhecidos como estereotipias). Muitos familiares desejam eliminá-los para que o autista não chame a atenção das demais pessoas. A preocupação geralmente é no sentido de proteger o filho de zombarias e bullying. Falta o entendimento de que as características autísticas não devem jamais ser motivo de vergonha e que lutamos justamente para que a sociedade conheça e aceite a neurodiversidade humana, para que ninguém precise se esconder dos olhos do mundo. A única razão para se intervir nos stims é quando eles colocam a pessoa em risco de alguma forma, quando são prejudiciais à integridade física da pessoa.
Em qualquer caso, contribuir para o desenvolvimento de habilidades e o bem estar da pessoa autista deve ser o foco da intervenção medicamentosa. Não para sedar, acalmar ou aliviar o incômodo de quem cuida ou trabalha com ela.
Por essa razão, sempre que possível, o autista deve participar do processo de tomada de decisões e sua opinião deve ser levada em consideração.