Texto originalmente publicado em 2020
Questões complexas e difíceis de lidar, que acabam sempre relegadas a segundo plano em épocas de normalidade, voltam a ficar em evidência neste período de distanciamento social. Uma delas diz respeito ao papel da família no tratamento de crianças autistas.
Por “tratamento”, queremos nos referir a todas as intervenções destinadas a construir habilidades e competências, a ampliar o repertório de vivências, a melhorar a qualidade de vida e desenvolver a autonomia. Estão incluídos aí as terapias com profissionais das áreas de psicologia, fonoaudiologia, terapia ocupacional, fisioterapia, os suportes pedagógicos dentro e fora do ambiente escolar, o acompanhamento médico e o uso de medicação (quando for o caso).
Sabemos que pais e cuidadores não são terapeutas. Não tem obrigação de conhecer as técnicas, estratégias e procedimentos que esses profissionais aplicam. Por outro lado, são eles que convivem com a criança, que constituem a estrutura emocional e o eixo de segurança da criança, que definem seus hábitos e que vão acompanhá-la em todas as fases de sua vida. Não podemos esquecer que também são responsáveis por ela do ponto de vista legal e, portanto, cabe a eles tomar decisões e cumprir com seus deveres da melhor forma possível.
Qualquer profissional que trabalha com crianças precisa entender desde o início que não está numa relação a dois. O resultado do seu trabalho depende do engajamento dos cuidadores.
Ter exercido a pediatria por quinze anos me deu uma boa noção a esse respeito: crianças não se vacinam sozinhas, não definem o que vão comer, não podem assumir o controle das inalações ou da administração do antibiótico para amigdalite etc. E as pessoas simplesmente não passam a saber tudo a respeito de cuidados com crianças quando se tornam pais e mães, como num passe de mágica. Precisam ler a respeito, se informar, buscar o conhecimento e a experiência de pessoas e profissionais em quem confiam.
No caso das crianças autistas, muitos aspectos do conhecimento geralmente disponibilizado precisam ser reconfigurados.
Os pais vão precisar de informações mais específicas sobre comunicação, comportamento e questões sensoriais. Vão precisar entender melhor as dificuldades do seu filho e como podem ajudá-lo a se desenvolver. Portanto, vão precisar ainda mais de orientação especializada. E devemos reconhecer que temos falhado consideravelmente nesta tarefa, enquanto profissionais na área. Em boa parte das vezes, não por falta de conhecimento técnico, mas por falta de sistematização de ações de treinamento para cuidadores.
É o sonho de todo profissional contar com pais e mães informados, participativos, proativos e disponíveis, mas raramente isso chega como um pacote pronto. Precisamos buscar capacitação para conseguir maior eficácia no engajamento dos familiares. Isso passa obrigatoriamente pelo reconhecimento de que não basta entregar uma lista de tarefas ou oferecer textos e manuais. É preciso enxergar a humanidade dos membros da família, reconhecer suas imperfeições e problemas – não para usá-los como bode expiatório, mas para encontrar caminhos alternativos.
Dada a natureza complexa da genética do autismo, não raramente nos deparamos com familiares com transtornos psiquiátricos – muitos deles nunca diagnosticados ou tratados. São cuidadores que apresentam suas próprias dificuldades cognitivas ou emocionais (disfunção executiva, ansiedade, depressão, desregulação do humor etc.), que tornam bastante problemática a assimilação de novas informações e orientações. São situações bastante delicadas, porque é necessário que alcancem percepção de seus problemas e da necessidade de buscar ajuda para si mesmos.
Ocasionalmente, as consequências vão além de influenciar a evolução da criança: há casos mais sérios que resultam em abuso e negligência.
Questões culturais também podem trazer problemas: não só as dificuldades decorrentes de baixa escolaridade e falta de informação de qualidade, mas também aquelas que refletem o repertório de vivências da pessoa (ocasionando desde confusões na interpretação das informações, até busca de alternativas não validadas pela ciência, de cunho místico ou religioso). Algumas famílias chegam a interromper o tratamento para correr atrás de soluções milagrosas e ilusórias. Expectativas irreais de diversos tipos (em relação à evolução da criança, à importância da própria participação ou às metas das terapias) também podem ter impacto negativo no tratamento. Muitas vezes são elas que estão por trás da terceirização do tratamento (aqueles pais que acreditam que basta levar o filho à terapia) ou do foco em objetivos equivocados (concentrando-se em resultados pedagógicos mesmo quando a criança não tem habilidades mínimas de autonomia ou em supressão de características autísticas ou em metas que são importantes para si e não para a criança).
Algumas vezes, os obstáculos são de ordem prática ou estrutural. Pais divorciados que seguem linhas terapêuticas conflitantes, indisponibilidade dos cuidadores por questões de trabalho ou outras demandas (doenças na família, ausência de rede de apoio), escassez de recursos ou impossibilidade de acesso aos serviços necessários.
A solução de muitos desses problemas vai além da alçada dos profissionais envolvidos no tratamento das crianças autistas.
Porém, é fundamental entender o contexto de adversidades de cada caso, para fazer ajustes, propor ferramentas mais adequadas, contribuir com direcionamentos mais eficazes ou participar da luta por políticas públicas eficazes. Acredito também que precisamos investir seriamente na elaboração de programas de capacitação de familiares