Falar sobre níveis do autismo poderia ser algo relativamente simples. Na prática, raramente é algo simples: a mistura de concepções e perspectivas diferentes muitas vezes resulta em confusão e discórdia.
Geralmente falamos de graus como sendo posições numa escala de gravidade: leve, moderado e grave. Cada grau seria uma categoria definida por parâmetros de intensidade de sinais e sintomas, habilidades e dificuldades. Neste sentido, existem graus dentro do autismo? A resposta é sim. É inegável que cada uma das características associadas ao autismo pode ser afetada de maneiras quase imperceptíveis até profundamente limitantes. E isso está de acordo com o conhecimento atual que temos acerca de genética e de neurodiversidade. Existem efeitos somatórios de várias alterações genéticas (não só no autismo, como também em todas as outras condições humanas), que podem levar a expressões fenotípicas (aquelas manifestações que podemos observar) muito variáveis.
Entretanto, tratando-se, por definição, de uma condição complexa do neurodesenvolvimento, falar de graus implica em considerar várias outras questões.
Após receber um diagnóstico de autismo, é quase automática a indagação da família para saber o grau. No caso de crianças pequenas, a única afirmação honesta é que não é possível saber. Qualquer outra resposta é um “chute”, uma adivinhação. Temos visto profissionais afirmando irresponsavelmente que um caso é leve ou grave baseado numa avaliação pontual de um ser cujo sistema nervoso ainda está se formando. Não temos essa previsibilidade acerca das trajetórias do desenvolvimento cerebral. Apenas o acompanhamento ao longo do tempo e a observação criteriosa da evolução da criança (incluindo a forma como responde às intervenções) pode dar uma estimativa mais segura.
A falta de conhecimento aprofundado sobre as nuances do autismo também pode levar a conclusões errôneas ou precipitadas por parte dos profissionais.
Por exemplo, uma criança que não adquire a fala (digamos, por uma apraxia de fala) pode ter boas habilidades de comunicação, mas ser falsamente identificada como “grave”. O contrário também pode acontecer: um autista aparentemente “leve” pode ter dificuldades sensoriais incapacitantes (uma situação que eu chamo de “sensorial de cristal”). Ao contrário do que muita gente pensa, uma mesma pessoa pode ter um perfil bem irregular no que se refere às suas características autísticas.
Outro aspecto de extrema importância é a presença de comorbidades (ou condições coexistentes). Estima-se que pelo menos 70% dos autistas tenha pelo menos uma comorbidade. Não há dúvida de que as comorbidades podem complicar muito a vida dessas pessoas, em alguns casos até mais que o autismo em si – como acontece, por exemplo, em autistas com esquizofrenia, epilepsia refratária, transtornos graves do humor ou deficiência intelectual. Ainda assim, embora os maiores obstáculos e limitações nesses casos não sejam derivadas diretamente do autismo, nem sempre é possível separá-las dele (como nos casos em que o autismo surge como uma das manifestações de uma síndrome genética ou por serem condições de bases neurobiológicas comuns).
O DSM 5 trouxe uma perspectiva prática à questão ao apresentar sua classificação de níveis de gravidade (denominados níveis 1, 2 e 3), baseada nas diferentes necessidades de suporte. Certamente é uma classificação mais adequada no que se refere ao entendimento do autismo enquanto deficiência e de maior utilidade para o planejamento de ações e alocação de recursos humanos e materiais. Porém, por mais que atenda esses objetivos, nem essa, nem qualquer outra classificação pode aferir uma dimensão mais profunda e subjetiva: a do sofrimento.
É justamente essa expectativa frustrada, tantas vezes inconsciente, de ter a medida do seu sofrimento expressa, o pivô de discussões rancorosas em grupos de autismo e redes sociais. Observamos familiares de autistas “graves” (com alta demanda de suporte) ressentidos com relatos de autistas “leves” e sentindo-se incompreendidos em suas lutas e angústias, ao mesmo tempo que não reconhecem as dores destes.
Não há escalas para medir sofrimento e, caso houvesse, ela provavelmente não teria muito a ver com a análise das características autísticas. No caso dos autistas, inclusive, arrisco dizer que a angústia dos mais “leves” pode ser tão maior quanto maior sua percepção das expectativas para que se “encaixem” num padrão irreal de comportamento e produtividade. O sofrimento tem mais a ver com coisas como preconceito, falta de aceitação, capacitismo, falta de apoios adequados (na família, na vida social, no estudo, no trabalho), dificuldade de acesso a serviços de terapia.
É inegável que os cuidadores dos autistas também enfrentam inúmeros obstáculos em suas vidas (seja na esfera profissional, familiar, social ou mesmo impactos diretos na saúde física e mental). Mas muitos desses obstáculos também tem a ver com preconceito, falta de aceitação, capacitismo, ausência de políticas públicas, falta de apoios adequados – de todos os tipos.
Tenho a impressão que todos têm mais problemas em comum do que pensam.