A sensação de que o tempo pode passar muito rápido ou muito devagar, dependendo das circunstâncias envolvidas, é familiar a todos nós. Pode passar voando quando estamos nos divertindo e pode parecer que os ponteiros do relógio simplesmente não se movem enquanto aguardamos notícias de um familiar em cirurgia, por exemplo.
Percepção do tempo é um conceito que descreve a experiência subjetiva de um indivíduo frente à passagem do tempo e duração de um evento. Ou seja, podemos compreender que não existe algo como tempo homogêneo e sim múltiplas experiências de tempo. Isso reflete a maneira como o cérebro se ajusta a diversas escalas temporais. As pesquisas sobre esse assunto são fascinantes e nos mostram a complexidade do processo (vou deixar duas referências no final para quem quiser se aprofundar).
A neurociência explica
O ser humano é capaz de processar a passagem do tempo como resultado de funções adaptativas de redes neurais arranjadas de acordo com a duração do estímulo recebido (interação de estruturas corticais, ligadas ao relógio interno e às áreas envolvidas nas diversas tarefas). Temos a participação de todos os canais sensoriais e várias regiões do cérebro (córtex frontal, gânglios da base, córtex parietal, cerebelo e hipocampo), que recebem, associam e interpretam informação em frações de milissegundos, segundos e minutos. Resulta, portanto, da soma de estímulos do ambiente e processos cognitivos (com forte envolvimento do nível de atenção, memória e estados emocionais. Percepção do tempo não é um processo único, envolve diferentes habilidades ancoradas em diferentes processos cognitivos.
Não há um prejuízo único.
De uma perspectiva mais ampla, a percepção do tempo é essencial para a coordenação de ações ou pensamentos para responder a demandas no ambiente. Isso inclui predizer a ocorrência de eventos para que o comportamento ocorra num momento adequado (como falar em uma roda de conversa, em sala de aula ou numa reunião de trabalho), perceber a duração de um evento ou estímulo, a ordem temporal dos estímulos e a sensação da velocidade da passagem do tempo. São habilidades importantes para se aprontar para os compromissos, para saber o tempo de deixar a comida no fogo ou um bolo no forno, para não se perder completamente jogando ou assistindo vídeos na internet.
Outro aspecto refere-se a um entendimento maior do tempo enquanto conceito abstrato, no qual eventos acontecem em determinada ordem, no qual há mudança de cenários em função do tempo, como a pessoa se situa em relação a eles e a capacidade de planejar para o futuro. Isso é importante para se ter uma visão de linearidade, da história de pessoas e famílias, de lugares e nações, para a habilidade de enxergar eventos diferentes como parte de um todo. Também é fundamental para a generalização, para estabelecer a relação entre o próprio comportamento e suas consequências e para planejar usando experiências prévias.
Distorções da percepção do tempo são associadas a algumas condições neurológicas e psiquiátricas, tais como TDAH, autismo depressão, Parkinson e esquizofrenia, variando com a gravidade e tipo de tarefas.
Neurodiversos e percepção do tempo
Auto-relatos de autistas, bem como daqueles que convivem com eles (familiares, professores e terapeutas), com frequência mencionam problemas com a noção de tempo. Lorna Wing ressalta a dificuldade de percepção da passagem do tempo associada com as atividades do momento. Ainda não é claro se isso representa falta de entendimento do tempo como organizador de eventos ou se é causado por um problema perceptual de representação do tempo.
Ainda não podemos afirmar o impacto dessa dificuldade na origem nas características do autismo, mas alguns autores arriscam algumas inferências. A dificuldades na compreensão da relação causa-efeito pode levar a pensamentos supersticiosos ou à lógica autorreferida, comumente descritos no autismo (um paciente precisava presenciar o nascer do sol todos os dias durante o horário de verão). A percepção dos intervalos de tempo entre eventos é crucial para nossa interação com o ambiente, para nossa noção de previsibilidade, o que pode acarretar frustração com a espera (alguns postulam que estereotipias podem funcionar como estratégia para controlar o tempo), reações lentificadas, problemas na troca de turnos na conversa por falta de coordenação social do tempo (entendimento compartilhado de quando algo vai acontecer), dificuldade com a antecipação e duração das atividades levando a rigidez na rotina.
Diversas pesquisas se dedicam a entender se o prejuízo dessa função relaciona-se a falha de um trajeto neuronal específico. Os diferentes modelos de estudo propostos são subjetivos e limitados. As conclusões ainda não são definitivas, mas apontam para um relógio interno preservado, porém com dificuldade na integração das diversas áreas cerebrais e processos cognitivos que resultam em alteração na apreciação do tempo. Se alguém está apostando na participação das funções executivas, lembrando que esse é um déficit comum no autismo e no TDAH, acertou.
Provavelmente toda pessoa com TDAH ou TEA tem histórias para contar sobre perder completamente a noção do tempo em várias situações e sobre a dificuldade de se organizar nas atividades do dia a dia.
Referências
Time Perception Mechanisms at Central Nervous System
Fontes, R. et al, Neurology International, April 2016
Time perception and autistic spectrum condition: A systematic review
Casassus, M. et al, Autism Research, October 2019