Há alguns dias, uma amiga foi ao supermercado com a filha. Um funcionário do estabelecimento, com síndrome de Down, abraçava e beijava a menina pelos corredores. Tentava fazer cócegas por baixo da roupa dela e pedia beijos. As duas tentaram se esquivar do rapaz, mas ele ia atrás delas, insistindo em perguntar informações pessoais e seguiu-as até o carro no estacionamento. A mãe, naturalmente constrangida com a situação, não sabia como reagir. Não queria ser rude com o rapaz, ao mesmo tempo que sentia que devia proteger a filha e ensiná-la sobre a questão de autorizar contato físico.
Pedi licença a ela para dividir essa história na página, porque é uma situação que ilustra bem onde estamos em termos de inclusão social no Brasil e abre importantes pontos de discussão.
Estamos engatinhando ainda no que se refere a inclusão escolar e social. É natural que as pessoas se sintam inseguras e confusas para lidar com isso. É algo novo para a maioria de nós e simplesmente não recebemos informações suficientes a esse respeito. As leis que garantem os direitos das pessoas com deficiência, para que possam estudar e trabalhar como todo mundo, são recentes, nem sempre são cumpridas e muitas vezes são mal interpretadas.
Começamos pelo termo pessoas com deficiência. Este termo se refere a pessoas com os mais variados tipos de deficiência: visual, auditiva, intelectual, motora, autistas. Não são “pessoas especiais com necessidades especiais”. São pessoas com deficiência e com necessidades específicas. Não há nada de errado com a palavra deficiência, não é motivo de constrangimento. Inclusive, se vivermos o suficiente, todos nós teremos algum tipo de deficiência. Podem usá-la sem problemas.
Algumas dessas pessoas tem traços faciais característicos (como, por exemplo, na síndrome de Down), apresentam alterações físicas aparentes (ausência de algum membro, por exemplo) ou portam acessórios (como bengalas, por exemplo) que fazem com que sejam facilmente identificadas em público. Já outras – como os autistas – apresentam o que chamamos de “deficiência invisível”, ou seja, não há nada em sua aparência que evidencie um funcionamento diferente. Muitas vezes estas passam por situações terríveis, pois suas dificuldades não reconhecidas podem ser interpretadas como comportamento abusivo e manipulador.
O ingresso das pessoas com deficiência (PCD) no mercado de trabalho também é cercado de preconceitos e tabus. Há um entendimento equivocado, uma atitude caritativa que se perpetua no meio empresarial. Não é nenhuma caridade ou favor empregar pessoas com deficiência. Elas são efetivamente capazes de exercer muito bem inúmeras atividades – não raro, até melhor que muitas pessoas sem deficiência. Em países com boa experiência na área, encontramos mediadores, pessoas fazem a “ponte” entre empregadores e PCDs, selecionando atividades adequadas para o perfil de cada um, atuando no treinamento de todos os envolvidos e na adaptação das condições de trabalho, quando necessárias. No geral, não contamos com mediadores por aqui. Então, da mesma forma que aconteceu e ainda acontece com a inclusão escolar, muitas pessoas acreditam que a simples boa vontade pode substituir a capacitação.
Spoiler: não pode.
Voltando ao funcionário do supermercado. A conduta dele é imprópria, gera constrangimento e mal estar. Não é ”fofa”. Ele provavelmente nunca foi orientado a esse respeito. Ao contrário: familiares e educadores costumam reforçar o comportamento amoroso, carinhoso, “bonzinho”. Isso não é errado – desde que se explique as diferenças dos relacionamentos entre parentes, amigos, conhecidos, pessoas estranhas. Os limites dos espaços pessoais. Inclusive, é até uma forma de auto proteção. A questão relacional precisa ser abordada sempre. Não devemos só achar bonitinho, passar a mão na cabeça, tratar como “café-com-leite”. Na clínica, muitas vezes eu vejo pais contarem, muito satisfeitos, que seus filhos autistas abraçam todo mundo que veem pela frente, que são muito carinhosos, “vão com qualquer um”. Pois é. Isso precisa ser trabalhado com o tempo. Atitudes “fofas” de uma criança não serão mais “fofas” quando for adulto. Não devemos infantilizar nossos adolescentes e adultos. Eles crescem e assimilam novas atitudes.
O que podemos fazer, então, enquanto cidadãos, se estivermos naquela situação do mercado? Podemos falar diretamente com o funcionário, perguntar seu nome, nos apresentar. Dizer, de modo gentil, que muitas pessoas podem se sentir desconfortáveis/ incomodadas com beijos e carinhos de quem elas não conhecem. Podemos também falar com o gerente: parabenizar o estabelecimento por abraçar a inclusão social; explicar o acontecido e sugerir que o rapaz seja orientado sobre a conduta com os clientes, para que possa aprender e evoluir no emprego.
Se nos calarmos, clientes desinformados podem fazer reclamações e levar o funcionário a ser demitido. E todos perdem.
Vamos apostar na evolução da sociedade.