Muitos pais e mães já ouviram falar de crianças que “se tornaram autistas” após a poda neuronal e temem as consequências desse fenômeno no desenvolvimento de seus filhos. Entretanto, a poda neuronal é um evento natural e esperado no processo de formação do sistema nervoso central (SNC). É um assunto complexo, mas vou tentar fazer um resumo bem simples.
As primeiras estruturas que vão formar o SNC aparecem logo no início da gestação, porém a arquitetura cerebral só estará completa cerca de duas décadas depois (sim, você leu isso mesmo: duas décadas depois!). Há toda uma sequência de eventos envolvida neste processo, regidos pela programação genética e sujeitos a influências diversas do meio ambiente (especialmente exposição a álcool, drogas e infecções nos períodos iniciais do desenvolvimento humano).
Proliferação
A multiplicação de células é muito intensa na vida intra-útero. O cérebro do recém-nascido apresenta muito mais neurônios que o cérebro adulto.
Migração
As células formadas movem-se do seu local de origem para as posições que ocuparão de forma definitiva, seguindo um determinado padrão.
Diferenciação
Fase em que os neurônios desenvolvem dendritos e axônios, que vão liga-los aos outros neurônios.
Estas duas etapas se completam entre 25 e 27 semanas de gestação.
Sinaptogênese
Formação de sinapses (pontos de contato entre dois neurônios, geralmente entre dendritos e axônios, onde ocorre a transmissão de impulsos entre eles). O pico na formação de sinapses ocorre no primeiro ano de vida após o nascimento, mas não é uniforme em todas as regiões cerebrais. Como no caso da proliferação de células, há uma superprodução de sinapses, que depois serão reduzidas pelo processo de poda.
Mielinização
Processo de revestimento dos axônios com uma substância lipídica-proteica que acelera a condução dos impulsos neuronais. Começa ainda na vida uterina e continua por duas décadas, seguindo um padrão que atende inicialmente as áreas do cérebro que são utilizadas primeiro.
A poda neuronal, como os anteriores, é um evento programado geneticamente. O número excessivo de neurônios e sinapses produzidos inicialmente gera um sistema de transmissão de informações sobrecarregado no cérebro imaturo. À medida que ocorre uma demanda de utilização desse sistema para atender as necessidades do novo ser, desde as primeiras funções sensoriais e motoras, os circuitos recrutados tem suas sinapses fortalecidas, enquanto que outros circuitos se enfraquecem. Poda neuronal é como chamamos o processo que visa eliminar conexões neuronais que não são utilizadas, para melhorar o desempenho das que são efetivamente funcionais. Ou seja, ela reorganiza a transmissão de informações entre as diferentes regiões cerebrais.
Como ocorre com a sinaptogênese e com a mielinização, a poda também não ocorre de maneira uniforme e sim em períodos diferentes em áreas diferentes. Por exemplo, a poda no córtex occipital (responsável pela visão, entre outras coisas) está completa antes dos 6 anos de idade, enquanto que no córtex pré-frontal (funções executivas) ela ocorre no período tardio da adolescência.
Observa-se que a poda que ocorre entre 18 e 30 meses de idade está envolvida em alguns casos de autismo – aqueles que chamamos de regressivo, quando ocorre perda de habilidades previamente adquiridas. Existem evidências que, nesses casos, alguns genes que controlam a poda estão alterados, fazendo com que o processo não aconteça de forma satisfatória: conexões não funcionais deixam de ser eliminadas, comprometendo a transmissão de informações entre uma área e outra do cérebro.
É importante deixar claro que alterações na poda neuronal não são responsáveis por todos os casos de autismo. Outros processos, também ligados ao neurodesenvolvimento, podem estar envolvidos.