Texto originalmente publicado em 2019
Eu estava no congresso americano de psiquiatria infantil em 2013, ano em que foi lançado o DSM 5. Havia todo um clima de expectativa em relação às discussões sobre as mudanças propostas pela nova classificação – e eu, claro, focada nas discussões em torno do TEA.
Uma das coisas que mais me agradaram foi a inclusão das alterações sensoriais entre os critérios diagnósticos, pela primeira vez na história do autismo.
O impacto dessas alterações na vida e no comportamento dos autistas era algo significativo demais para continuar sendo negligenciado. Esse reconhecimento, por parte de um sistema de classificação que influencia tanto a prática clínica no mundo todo, foi um avanço considerável, abrindo caminho para ampliar a visão de muitos profissionais (cujo conhecimento da questão sensorial geralmente restringe-se aos comportamentos de tapar os ouvidos com barulho ou resistir ao toque físico que alguns autistas apresentam).
Mas eu havia tido a oportunidade de conhecer bem os efeitos das alterações sensoriais vários anos antes disso.
De que forma? Ouvindo os autistas.
Antes mesmo de conhecer os ativistas brasileiros, eu já seguia blogs e páginas de autistas e comunidades americanas. Foi esse conhecimento que me dava a segurança para orientar familiares e professores de autistas não verbais quando ouvia seus relatos de que a criança ou adolescente “surtava do nada”. Em muitos casos, a origem do “surto” era sensorial (leia mais sobre isso no texto sobre agressividade aqui na página) e, portanto, nada óbvia para neurotípicos. Os testemunhos dos autistas oralizados a respeito das sensações que tinham e do que essas sensações provocavam foram essenciais para construir o conhecimento que temos a esse respeito hoje e que nos permite ajudar aqueles que não conseguem se expressar.
Tenho sempre isso em mente nas situações em que pais e mães de autistas “severos” argumentam que o protagonismo dos autistas “leves” exclui seus filhos. Penso em todas as coisas que ao autistas que conseguem elaborar e expressar suas dificuldades já me ensinaram e que me ajudam a compreender o comportamento daqueles que não conseguem (e que não são ensinadas em cursos por aí). Dificuldades no planejamento motor, no comportamento de solicitação, na modulação das próprias reações aos estímulos sociais, na regulação emocional, entre outras.
É claro que os desafios de uns e outros são diferentes. Trabalho diariamente com pessoas de todos os níveis do espectro. Algumas com condições coexistentes (também chamadas comorbidades) que impõem dificuldades ainda maiores: deficiência intelectual, epilepsia, síndromes genéticas, malformações cerebrais, transtornos psiquiátricos. As circunstâncias e necessidades de uns podem ser completamente diferentes das de outros e nem sempre isso é compreendido – dos dois lados. Porém precisamos lembrar que temos muito a contribuir uns com os outros e lutamos por uma causa comum.
Estamos todos aprendendo. Podemos aprender muito mais se seguirmos juntos.