Confesso que venho evitando escrever sobre esse tema há um tempo (ok, ter vivido isso na pele pode ter alguma coisa a ver com essa resistência…).
Falar sobre alimentação na infância já não é uma tarefa fácil (algo que ficou bem claro durante os quinze anos em que exerci a pediatria). É um assunto cercado de carga emocional: ter um filho que não come é quase um atestado de incompetência materna. Muito julgamento, infinitos palpites.
Seletividade alimentar é algo que não acontece só no autismo, claro. Muita gente, inclusive, usa o termo de forma errada: confunde com preferências (que todos nós temos), com maus hábitos ou com a perda de apetite que acontece em algumas circunstâncias da vida (troca de dentes, doenças orgânicas, mudanças ambientais etc.).
Estudos apontam que crianças autistas têm cinco vezes mais problemas para se alimentar que crianças típicas, o que pode colocá-las em risco de deficiências nutricionais. Alterações no processamento sensorial estão presentes em até 95% dos autistas e geralmente estão associadas a essa dificuldade (especialmente a sensibilidade oral). Com frequência, os relatos relacionam a seletividade alimentar a cor, gosto, cheiro, textura, consistência e mesmo temperatura da comida. Ou seja, a aspectos sensoriais.
Podem existir outros agravantes: a dispraxia (sim, alguns tem dificuldades com aspectos motores, seja no ato de se alimentar em si, manuseio de talheres ou mesmo para mastigar), a agitação psicomotora (aqueles que não conseguem parar sentados pelo tempo de uma refeição), a rigidez (só come se estiver em determinado lugar, com determinados utensílios; um alimento não pode encostar no outro; a batata tem que ser cortada na diagonal; tem que obedecer a ordem de colocar os ingredientes), o desinteresse ou mesmo aversão pelo ambiente social em que ocorre aquela refeição.
Como agir diante da seletividade?
- Em primeiro lugar: respeite o organismo da pessoa. Forçar uma pessoa a ingerir algo que seu próprio corpo rejeita é uma violência. Chantagens e castigos também não vão resolver a situação. Essas atitudes só pioram as coisas e deixam traumas a longo prazo.
- Busque ajuda profissional, de preferência com terapeuta ocupacional com formação em Integração Sensorial.
- Regras gerais de alimentação saudável continuam valendo! Estabeleça horários regulares para as refeições, em ambiente calmo. Limite o acesso a “porcarias”, dê preferência a alimentos frescos e nutritivos.
- Faça uma lista do que a criança aceita e trabalhe a partir daí. Ela gosta de alimentos “secos” (arroz, farofa, batata palha) e não suporta molhos? Vamos enriquecer o arroz ou a farofa com cenoura ralada, grãos integrais, ovos cozidos. Não há limite para o número de tentativas. Dê tempo para que a criança se acostume com qualquer novidade. Mantenha uma atitude positiva. Modifique o preparo e a apresentação dos pratos. Inclua novos ingredientes gradualmente, tente novas receitas. Não desista.
- Favoreça a exposição da criança aos alimentos. Leve ao varejão, peça ajuda para escolher frutas e legumes. Dê oportunidades para que manipule alimentos diversos na cozinha, mesmo sem a expectativa de comer, estimule a participar do preparo de receitas diversas. Se puder, faça uma horta ou mesmo o cultivo de ervas aromáticas e temperos em vasos.
- Acompanhe o estado nutricional com o médico. Seletividade alimentar costuma ser um problema de longo prazo. Não entre em desespero. Suplementos alimentares e vitaminas podem ser usados, de acordo com as necessidades de cada um, para que não haja prejuízos para o organismo.
- Tenha muito cuidado com as “dietas para tratar autismo”. A Sociedade Brasileira de Pediatria já se posicionou a respeito: não há evidências que justifiquem restrições alimentares para pessoas autistas. Só são admitidas dietas de exclusão no caso de diagnósticos confirmados de Doença Celíaca, alergia alimentar, intolerâncias ou hipersensibilidade a alimentos.
Na maior parte das vezes, a seletividade melhora com o passar dos anos, mas nem sempre. Compreensão, paciência, criatividade e persistência são as palavras de ordem.