Quando o assunto é medicar crianças e adolescentes, não faltam opiniões acaloradas.
Melhor dizendo: palpites acalorados. Porque, em sua grande maioria, não se baseiam em conhecimento aprofundado e sim em crenças e vivências pessoais. O que, a princípio, não deveria pesar na decisão de ninguém, mas, na prática, acaba mexendo com a insegurança de pais e mães que se veem nessa situação.
Para iniciar uma discussão honesta sobre o assunto, é preciso esclarecer que uma boa parte das crianças e adolescentes com condições do neurodesenvolvimento não precisa mesmo de “remédio”. A indicação para uso de medicação existe nos casos em que identificamos uma comorbidade neuropsiquiátrica (como ansiedade, TOC, convulsões etc) ou quando a medicação tem o potencial de melhorar a qualidade de vida da pessoa ou de aumentar a disponibilidade para a aprendizagem e desenvolvimento.
Mas, dada a importância dos palpites nessas decisões, separei aqui os principais cenários em que isso acontece.
Familiares e amigos
Muitos estão genuinamente assustados diante da possibilidade de medicar a criança/ adolescente e receosos de consequências futuras. Há um envolvimento emocional com a família e, na falta de esclarecimento suficiente, a tendência de se apegarem a conselhos propagados pelo senso comum para “ajudar no desenvolvimento” (colocar em um esporte, ter uma disciplina mais rigorosa) ou a terapias milagrosas (que abundam na indústria do autismo) como formas de lidar com os próprios medos. Outras vezes, são pessoas que simplesmente querem impor suas ideias preconcebidas, sem ter a mínima noção dos aspectos envolvidos.
Outros médicos (não especialistas)
O pediatra da criança pode ser o primeiro a se posicionar contra o uso de medicação. Infelizmente, observamos um grande despreparo desses profissionais para lidar com questões do neurodesenvolvimento e de saúde mental. Um levantamento feito pelo blog Lagarta Vira Pupa com mães de crianças autistas mostrou que, em mais de 70% dos casos, os pediatras das crianças não tinham sequer observado os sinais de autismo. O que dirá de avaliar os complexos aspectos da condição e ter conhecimento aprofundado sobre intervenção? Ontem mesmo vi o vídeo de uma pediatra falando em autismo virtual – acho que não preciso dizer mais nada…
Terapeutas e psicopedagogos
A atuação de equipe multidisciplinar é sempre desejável quando se trata de uma condição complexa, que afeta várias áreas da vida da pessoa. É uma soma, onde o resultado do trabalho de cada profissional contribui para o desenvolvimento global. Me entristece cada vez que ouço o relato (frequente) de que a fala do profissional foi: “Não precisa medicar seu filho no dia da minha sessão. Eu consigo lidar com ele muito bem sem remédio”. São muitos enganos numa só fala. O desconhecimento sobre o funcionamento da medicação (a maioria não tem essa ação imediata). O desrespeito ao trabalho de profissional de outra área e infração ética (caso tenha realmente dúvidas sobre a eficácia ou efeitos adversos da medicação, é preciso entrar em contato ou orientar a família a conversar com o médico). A vaidade e a crença de que os “outros” – inclusive a família – é que não conseguem lidar com a criança (sendo que o ambiente estruturado das sessões, com interação 1:1 e estímulos controlados é um ambiente artificial, sem as demandas sensoriais, cognitivas e sociais dos ambientes naturais).
Grupos de pais na internet
Acho espantosa a troca de “opiniões” que ocorre em grupos de pais e mães. Realmente não sei quando vão entender que CADA CASO É UM CASO. Mesmo que as dificuldades enfrentadas sejam semelhantes, cada organismo reage de uma forma à medicação, tanto nos efeitos desejados como nos efeitos adversos. Os relatos de outras pessoas são apenas os relatos de outras pessoas, não significam que seu filho reagirá de uma forma ou de outra. As tentativas de “comparar”, para se sentir mais seguro em relação às próprias decisões não fazem sentido algum, só mostra que as pessoas estão depositando sua confiança no lugar errado.
Só existe um caminho, quando o assunto é medicação: uma conversa honesta e transparente com o médico da criança/adolescente.
Sabemos dos obstáculos enfrentados pelas famílias. Escolher o médico não é uma opção para muitas delas. Sabemos que existem consultas de 5 minutos; que existem médicos para quem diagnóstico equivale a medicar, sem avaliar adequadamente as necessidades de cada um; que existem profissionais que não estão abertos a ouvir as dúvidas e preocupações dos pais ou dos terapeutas. Por isso lutamos por maior capacitação dos profissionais e por acesso mais amplo a serviços médicos.
Só é preciso deixar claro que os obstáculos não mudam o fato de que apenas o profissional médico está habilitado para indicar, iniciar, ajustar doses e horários, monitorar os efeitos e suspender ou trocar o medicamento.
Fazer uso de medicação é, sim, uma decisão importante, que precisa ser tomada de forma criteriosa e responsável. Pode ser um fator decisivo para o desenvolvimento, bem estar e qualidade de vida da pessoa, porém exige comprometimento da família e, em alguns casos, pode acarretar efeitos indesejáveis que precisam ser manejados por um profissional preparado.
Não é assunto para palpiteiros.