A expressão sincericídio já se tornou popular na comunidade autista. Não dá pra negar que é um termo surpreendentemente descritivo: dizemos, em linguagem informal, que alguém comete sincericídio quando se expressa com aquela sinceridade excessiva, sem filtro, indevida, com resultados desastrosos. A “sinceridade suicida”.
Não é exagero. Os desastres podem incluir perda de bolsas de estudo, de empregos, grandes mal entendidos, exclusão social e rompimentos de relacionamentos. Deixam um rastro de sofrimento e danos por vezes irreparáveis.
As interações sociais típicas toleram – e mesmo pressupõem – algum grau de dissimulação e falta de autenticidade, em nome de um convívio mais aprazível. Com certa frequência, falar a verdade nua e crua pode ser desagradável, ofensivo e totalmente desnecessário. Ou seja, algumas mentiras desempenham um papel “conciliador” em diversas situações sociais (não estamos nos referindo aqui às mentiras usadas para prejudicar outras pessoas intencionalmente, mas sim àquelas mentirinhas “inocentes” que fazem parte do cotidiano das pessoas). Alegar dor de cabeça para fugir de um compromisso com alguém que não quer ver, elogiar um corte de cabelo que detestou para não magoar a outra pessoa, combinar um café que nunca vai acontecer e assim por diante. É algo que faz parte do contrato social implícito de determinada cultura e tão entranhado em nossas vidas que chega a ser considerado uma demonstração de boas maneiras.
Por que pessoas autistas estão tão sujeitas a cometer sincericídio?
Como sempre fazemos questão de ressaltar aqui, todo comportamento resulta do processamento de informações – algo muito particular para cada um de nós e que, por sua vez, reflete nossa bagagem de vida e funções cognitivas, em grande parte definidas pela configuração das nossas redes neurais. Existe, portanto, peculiaridades das mentes atípicas envolvidas aí. Quem acompanha os textos da página sabe do nosso empenho em “destrinchar” esses componentes: não só para ampliar a compreensão de quem convive com isso, como também para favorecer a construção de estratégias.
Alguns aspectos por trás do sincericídio:
- Literalidade da linguagem: jogar com as palavras, fazer insinuações, dar indiretas não costumam fazer parte do repertório expressivo dos autistas. As palavras geralmente são escolhidas pelos seus significados literais, sem atenuantes. Em circunstâncias sensíveis, isso pode ser um problema.
- Déficit de Teoria da Mente: reconhecer os estados mentais dos nossos interlocutores (seus sentimentos, interesses, expectativas, intenções) nos possibilita adequar nosso comportamento aos mais diversos ambientes. O déficit nessa habilidade (que é conhecida por Teoria da Mente) é uma das características centrais do TEA e talvez a principal responsável pelo sincericídio. A falta de leitura do contexto social leva a falhas na elaboração de respostas adequadas em determinadas situações
- Rigidez de pensamento: no “pensamento absoluto” (tudo ou nada, oito ou oitenta, preto ou branco), característico do TEA, há pouco espaço para relativização. As regras assimiladas precisam ser cumpridas rigorosamente. As coisas são como são: “dourar a pílula”, ocultar detalhes e camuflar a situação não fazem sentido dentro dessa lógica. Entra aí também o senso de justiça apurado e a defesa intransigente da verdade.
- Disfunção executiva: a falta de controle inibitório (daquele “freio” do autocontrole) leva à impulsividade. A pessoa fala e age antes de pensar e considerar as consequências.
Para finalizar o assunto, nada melhor que derrubar mais um mito do autismo: a tendência à sinceridade excessiva inibe em grande parte as “mentiras sociais”, mas isso não quer dizer que autistas nunca mentem. Sim, eles podem mentir. Dificilmente com a naturalidade espontânea de muitas pessoas típicas, mas – desde que haja uma motivação forte o suficiente, justificativas e tempo para elaboração – pode rolar, sim.