Já perdi a conta do número de vezes que ouvi de um familiar, professor ou mesmo terapeuta a respeito de um autista: “Não sei dizer o que aconteceu… estava tudo bem e, de repente, ele surtou “do nada””.
Primeiro a gente respira fundo. Depois tenta explicar que não existe “do nada”.
Ninguém surta “do nada”.
Ninguém trava ou agride (ao outro ou a si mesmo) “do nada”.
Ninguém tenta tirar a própria vida “do nada”.
“Do nada” nesse contexto trata-se de um cenário de sobrecarga extrema que não é identificado como tal pelos outros – e, o que é pior, nem mesmo pela própria pessoa, em alguns casos. Geralmente é uma situação em que os recursos internos e externos para lidar com as demandas da vida estão no limite. Qualquer mínimo agravante a partir de um certo ponto (um desconforto físico, uma frustração qualquer, uma demanda comum), funciona como a gota d’água que faz o copo transbordar. O que observamos, a seguir, são as manifestações de quem já não está mais em controle.
“Não pare de produzir mesmo que a cobrança se transforme em insônia, gastrite, dores ou infelicidade!”
Todos nós, típicos ou atípicos, vivenciamos situações de sobrecarga. E somos criados numa cultura que valoriza a força, a superação e o sacrifício, ao mesmo tempo que despreza os que não são capazes de se erguer acima de suas circunstâncias. Numa cultura em que é aceitável (mais que isso, digno de aplausos) ignorar os próprios limites, os avisos do corpo, da mente, das nossas emoções. Não importa que a cobrança chegue na forma de insônia, gastrite, dores ou infelicidade pura e simples.
Portanto, não somos ensinados a reconhecer situações de sobrecarga, uma lacuna lastimável na nossa constituição enquanto seres humanos. É justamente essa falha que nos leva a exibir reações de surpresa, desagrado e pena quando alguém ultrapassa a linha da sobrecarga e perde o controle.
Dentro da nossa proposta de falar do contexto dos autistas, volto à questão do esgotamento de recursos internos e externos que define a situação de sobrecarga.
Os déficits invisíveis do autismo
Já falamos em diversos outros textos (todos disponíveis no site) sobre os déficits invisíveis do autismo e de como podem limitar os recursos internos para lidar com as demandas do cotidiano. Dentre eles, é importante considerar as dificuldades de comunicação social (mais detalhadas nos textos de Comportamento de Solicitação, Sincericídio, Ao pé da letra, Teoria da Mente), as alterações do processamento sensorial (Transtorno do Processamento Sensorial, À flor da pele e Seletividade Alimentar), da rigidez de comportamento (Rigidez de pensamento, A rigidez autística e os relacionamentos) e as comorbidades. De forma resumida, eles são descritos como os gatilhos no texto sobre Agressividade.
Já os recursos externos referem-se à soma das nossas redes de apoio, dos fatores de proteção e suporte com os quais podemos contar. Aceitação, acolhimento, relacionamentos e vínculos afetivos significativos, suporte social, assistência educacional e profissional adequadas. Aqueles aspectos fundamentais para a sanidade mental de todos nós.
Enquanto eu escrevia o texto e refletia sobre recursos externos, lembrei de uma palestra memorável do psiquiatra Marcos Mercadante que assisti num evento sobre autismo, em 2007. Cabe dizer aqui que o Dr. Marcos Mercadante era uma das maiores referências em autismo no Brasil.
Um médico extraordinário, que partiu precocemente em 2011, aos 51 anos, deixando um legado de extrema relevância (o Ambulatório de Cognição Social da UNIFESP leva seu nome, em homenagem). A palestra naquela ocasião era sobre o futuro da saúde mental infantil no nosso país. Eu aguardava ansiosa na plateia (além de grande admiradora do seu trabalho, ele era o médico do meu filho). Confesso que esperava que falasse sobre o que poderíamos antever para o futuro em termos de novas perspectivas genéticas, de descobertas da neurociência ou de tratamentos inovadores. Mas a palestra dele não abordou nada disso. Ele discorreu sobre desigualdade social, violência doméstica, populações desassistidas, discriminação, falta de acesso a diagnóstico, tratamento e suportes de todo tipo. Do impacto de tudo isso no desenvolvimento de crianças e adolescentes, na vida de suas famílias, na sociedade como um todo.
Passados muitos anos, entendo cada vez mais a fala dele.
Toda família, cada uma dentro da sua realidade particular, se prepara e busca as melhores opções para seu filho. Mas, num cenário mais amplo, o caminhar individual não tem como chegar aonde queremos. Porque a ignorância, o preconceito e o despreparo geral afetam a todos nós, de um jeito ou de outro.
Ampliar recursos externos é algo que não se restringe ao ambiente familiar e sim algo que deve se estender obrigatoriamente para todos os ambientes.
Está na hora de reconhecer a nossa situação coletiva de sobrecarga.
Aproveito para indicar a leitura de um outro texto do site: Teoria Das Colheres