Texto originalmente publicado em 2021
Ontem, o programa Fantástico iniciou uma série sobre TDAH com o Dr. Dráuzio Varella. É claro que a repercussão da reportagem foi grande e já acendeu o debate de sempre, como todas as vezes que o assunto ganha espaço na mídia.
Consigo entender que muita gente pode ficar confusa com os aspectos descritos como sendo traços da condição. Todo mundo já esqueceu de dar recados ou deixou um objeto em algum lugar, teve dificuldades em se concentrar em algo ou agiu impulsivamente. Não parece um “transtorno” e sim algo que acontece na vida de qualquer um e que melhora com um pouco de boa vontade e disciplina. Justamente aí entra o segundo ponto.
Se a gente acredita que a pessoa tem tantas falhas de forma recorrente e não aprende com os próprios erros, provavelmente ela não está nem aí. É relaxada, negligente, irresponsável, sem noção, manipuladora. Ou seja, já entramos na seara das falhas de caráter. E convenhamos, atribuir comportamentos inadequados (ou insuficientes para responder às demandas do ambiente) a falhas na criação, falta de limites ou a traços de personalidade é algo bem mais confortável e simples do que aceitar a complexidade dos processos mentais por trás deles. Não é à toa que o diagnóstico de TDAH é tantas vezes encarado como “desculpa” para os erros da pessoa.
Ser conhecido como um “problema de criança” também não ajudou na compreensão do público leigo. Sabemos que a prevalência na infância e vida adulta é cada vez mais próxima, à medida que conhecemos mais sobre a condição. Nas duas populações fica em torno de 5%. O que acontece é que a criança sem educação ou sem limites ou no mundo da lua vira um adulto que não se esforça o suficiente para dar conta das suas tarefas. O estrago ao longo da vida é muito significativo. Vai da autoestima arruinada pela sensação de ser sempre menos capaz que o resto do mundo a perda de oportunidades de escolarização e emprego, a maiores índices de abuso de álcool e drogas, a prejuízo nas relações familiares. Só quem passa pelo problema sabe como é o impacto na vida.
Porém, o ponto que mais me exaspera de todos é a discussão em torno do tratamento medicamentoso. É bem aí que podemos enxergar o tamanho do preconceito com os problemas de saúde mental. TDAH (como muitas outras condições: transtornos da aprendizagem, autismo, depressão etc.) é invisível. Não tem sinais externos que o identifiquem, não tem resultados de exames laboratoriais que o comprovem (não importa o quanto já sabemos acerca do funcionamento do cérebro). O uso de medicamentos pra tratar algo que mais aparenta ser falta de vontade e disciplina é sempre alvo de condenação geral (não importa o quanto tenha mudado a vida de tanta gente). É um atestado de incompetência, quase uma heresia.
Se eu tenho hipotireoidismo ou pressão alta, não há problemas em tomar medicamentos para o resto da vida. Como se o cérebro estivesse acima de ser um órgão do corpo, de também estar sujeito a aspectos biológicos do organismo (por que ninguém lembra de epilepsia, AVCs, Parkinson ou Alzheimer nessa hora?).
Se, ao invés de tanto julgamento tivéssemos acolhimento, avaliação adequada e suportes educacionais e profissionais, a vida de pessoas com TDAH poderia ser mais plena, produtiva e feliz.