Em 2021, a ginasta mais condecorada em mundiais dos Estados Unidos foi notícia no mundo todo por desistir da final das Olimpíadas de Tokyo, expondo sua preocupação com sua saúde física e mental. Simone Biles tem TDAH, a condição neurobiológica mais comum e mais estudada entre as condições de saúde mental – e, inacreditavelmente, ainda alvo de tanta desinformação e preconceito.
Falando como profissional de saúde mental de crianças e adolescentes, fico feliz em ver cada vez mais adultos falando da sua vida com TDAH e das muitas maneiras em que isso afeta seu dia a dia, seus trabalhos e relacionamentos.
Porque chega uma hora que a gente cansa de ouvir besteira.
Cansa de ouvir que é uma “doença inventada pela indústria de medicamentos”, que é diagnóstico da moda (embora nos últimos tempos tenha sido substituído pelo autismo nessa categoria), que é desculpa de pais que não educam e não dão limites aos filhos, que é sinônimo de mau comportamento, preguiça, falta de esforço.
Cansa de ver famílias assustadas ao receber o diagnóstico e esmagadas pela culpa e pelo julgamento alheio. Esmagadas pelas centenas de conselhos e comentários: tenha rédea firme, coloque num esporte, tire as telas da criança, dê castigos.
Cansa de receber relatos de falas sem nenhum embasamento de profissionais da saúde e da educação. De testemunhar a falta de acesso da população a diagnóstico e tratamento adequados.
A maior parte dos adultos que agora tomam a frente para falar do diagnóstico não teve a chance de receber um diagnóstico ou tratamento na infância. Aliás, também cresceram num mundo sem internet, muitas vezes fazendo esportes (Simone Biles!!!) ou com uma criação mais rígida.
Aos trancos e barrancos, eles foram levando a vida. Muitos perderam oportunidades de estudo e de trabalho, apesar de seu potencial. Muitos desenvolveram transtorno de ansiedade, depressão e disforia sensível à rejeição. Muitos viram ruir relacionamentos e tiveram sua autoestima destruída. Muitos recorreram a vícios diversos (sim, há pelo menos 50% a mais de chance de envolvimento com substâncias psicoativas).
Finalmente, depois de adultos, descobrem que suas dificuldades têm uma origem. Que TDAH é muito mais que o menino encapetado da sala de aula ou a menina no mundo da lua. Que na verdade, é uma condição crônica, do neurodesenvolvimento que ocasiona um déficit em processos cognitivos essenciais para a organização, planejamento e execução de tarefas, desde as mais simples até as mais complexas. O TDAH afeta justamente a parte do cérebro que comanda a recepção de estímulos externos e todo o sistema tomada de decisões (elencar opções e estabelecer prioridades, mantendo em mente o nosso propósito), noção de timing (o “tempo certo” de cada passo, o controle da sequência estabelecida), flexibilidade para fazer ajustes e autocontrole. Ou seja, funções essenciais para qualquer de nossas ações.
O tratamento adequado, que combina terapia cognitiva comportamental e medicamentos, pode ser feito em qualquer idade. Porém, é inegável que, quando iniciado na infância, não só tem melhores resultados (aproveitando o desenvolvimento do córtex pré-frontal, que só se completa após os vinte anos) como evita muitos prejuízos na vida da pessoa.
Espero que cada vez mais os adultos com TDAH falem sobre sua condição. Seus relatos nos ajudam a desmistificar o assunto e a conversar honestamente sobre saúde mental ao longo da vida.