Um dia desses, eu estava no supermercado, escolhendo tomates, quando um funcionário se aproximou com uma placa na mão. Em questão de segundos, levantei a cabeça para olhar o que era e ele já anunciou; “Não se preocupe, estamos abaixando o preço!”.
Uma bússola para navegar o mundo social
Este é um exemplo para ilustrar o que chamamos de Teoria da Mente (ToM): o funcionário do mercado inferiu que eu estaria preocupada que a placa que ele trazia significasse um aumento do preço do produto que estava comprando e reagiu com base nesta inferência. A ToM – também chamada de mentalização – refere-se a uma habilidade natural dos seres humanos em atribuir estados mentais a si mesmos e a terceiros, a fim de compreender e predizer comportamentos. É esta habilidade que nos permite processar rapidamente as informações do ambiente social à nossa volta e elaborar uma resposta adaptativa a elas. Reconhecer os estados mentais dos nossos interlocutores (seus sentimentos, interesses, expectativas, intenções) nos possibilita adequar nosso comportamento às mais diversas situações. É a base das nossas habilidades sociais. Usamos nossa ToM o tempo todo: quando levantamos para fechar a janela se a visita em casa comenta que está ventando muito; quando apressamos o término de um assunto se a outra pessoa estiver inquieta, olhando o relógio; quando interrompemos uma piada no meio à chegada do colega que volta do enterro de um familiar; quando usamos um tom mais formal para nos dirigir a uma autoridade; quando recusamos um convite que sabemos ter sido feito “por educação”. A ToM é a nossa bússola para navegar o mundo social.
Teoria da Mente e Autismo
O déficit da ToM é uma característica central no TEA, contribuindo para os prejuízos nos padrões de comunicação e na interação social dos autistas. Existem alguns testes padronizados para se avaliar a performance das pessoas em relação à mentalização, mas a identificação de prejuízos mais sutis exige um olhar clínico experiente. Algumas peculiaridades podem chamar a atenção na análise das vivências sociais de alguns autistas: a falta de traquejo social, de “noção”, a ingenuidade ou falta de malícia, a falha em reconhecer aspectos de hierarquia e em adequar-se a ambientes diferentes, a sinceridade excessiva, sem “filtro”.
Dito isso, quero colocar uma questão que tem surgido na clínica com certa frequência, e que talvez seja mais um daqueles desdobramentos que não são encontrados nos livros.
É compreensível que navegar o mundo social sem a bússola da ToM seja algo estressante. Alguns autistas ficam realmente muito ansiosos ao interagir com outras pessoas, justamente por não saberem direito o que esperar delas, por não conseguir inferir seu estado mental ou predizer seu comportamento. Mas tenho observado, em certos casos, que o déficit da ToM, aliado à rigidez de pensamento (aquele “tudo ou nada” bem conhecido), podem dar origem a posturas extremamente defensivas. Como se – na impossibilidade de chegarem a uma conclusão a respeito das intenções da(s) pessoa(s) com quem interagem – partissem do princípio que estas são desfavoráveis a eles. Isso torna-os extremamente sensíveis a qualquer comentário ou sugestão que possa soar como uma crítica em potencial.
Na situação do mercado mencionada no início do texto, por exemplo, poderíamos ter uma reação muito negativa ao comentário do funcionário, tipo “Você pensa que eu não sei ver o preço das coisas?”.
Sugestões de professores na escola, conversas de colegas, comentários inocentes de vários tipos desencadeiam explosões de raiva desproporcionais. Pouco adianta explicar que não há intenção de ofender; parece que uma desconfiança generalizada (quase paranoica às vezes) se instala e passa a comandar o modo de reagir. Todos acabam tendo que pisar em ovos para falar de qualquer assunto, o que desgasta os relacionamentos mais próximos e ocasiona sofrimento dos dois lados. Enfim, não é algo fácil de se lidar. Mas, quanto antes identificarmos esse padrão de interação, maior a chance de construir um novo repertório.