Texto originalmente publicado em 2020
“Recordar é viver!”, diz a música.
E quando “recordar” for o gatilho para crises de muito sofrimento?
A primeira vez que uma situação assim me chamou a atenção aconteceu há uns dois anos. Um paciente autista, já adolescente, num dia qualquer, de repente, agrediu a irmã do nada. Nervosíssimo, gritou, chorou, demorou para se acalmar. Bem mais tarde, me contou que havia se lembrado de uma vez em que a irmã o jogou na areia durante uma viagem à praia quando eram crianças e que aquela lembrança tinha desencadeado um nervosismo incontrolável.
Mais recentemente, outro paciente passou por uma experiência semelhante. Uma lembrança ruim do passado que surgiu de repente o deixou tão desorganizado que ele meteu o pé numa porta de vidro (que estilhaçou, fazendo com que cortasse a perna em vários lugares).
Comecei a lembrar de alguns relatos parecidos do passado. Então, nas últimas semanas, duas pessoas me perguntaram se eu já tinha visto algo assim. E como seria um Transtorno de Estresse Pós-Traumático no autismo.
Precisei fazer uma pausa neste ponto. Esperar os neurônios conversarem um pouco e pesquisar. Para minha surpresa, concluí que fazia sentido e ainda por cima encontrei alguns estudos preliminares a respeito.
O Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT)
O Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) desenvolve-se após a exposição a um evento traumático grave, com apresentação de sintomas de revivescência do evento traumático (flashbacks, pesadelos), evitação de estímulos associados e hipervigilância. É mais comum em pessoas com outros transtornos psiquiátricos, pode cursar com um amplo espectro de manifestações e evolução flutuante.
Temos que considerar que toda resposta ao estresse é resultado da interação entre características da pessoa (aspectos orgânicos, cognitivos e comportamentais), evento estressor e demandas do meio. Ou seja, nem sempre veremos aquela situação clássica que vemos em filmes que retratam TEPT após catástrofes, sequestros ou abuso sexual. Não é, portanto, algo simples de ser identificado e tratado – especialmente em populações neurodiversas.
TEPT e autismo
Autistas podem apresentar uma maior vulnerabilidade à ocorrência de eventos traumáticos. Além disso, algumas características autistas podem estar relacionadas à percepção de determinadas situações como particularmente traumáticas (exclusão social, ser alvo de zombaria ou rejeição, sobrecarga sensorial, mudanças ambientais inesperadas etc). A rigidez cognitiva, ocorrência de pensamentos repetitivos e dificuldades na comunicação e autorregulação também afetam a maneira que os autistas reagem a essas situações, com impacto direto na sua capacidade de tolerar sofrimento e elaborar respostas adaptativas.
Sempre que penso em comorbidades psiquiátricas no autismo, penso em como é importante mantermos todas essas peculiaridades em mente. Porque, se tentarmos encaixar os relatos dentro dos quadros clínicos clássicos, vamos deixar de identificar muita coisa.
Não temos nem ideia da prevalência de TEPT em autistas. Mas, enquanto não tivermos mais estudos e mais respostas, é bom estarmos com as antenas ligadas.
PTSD and autism spectrum disorder: Co-morbidity, gaps in research, and potential shared mechanisms