O menino “surta” com o cheiro da merenda. Fica nervoso com o som do sinal anunciando o recreio ou quando a sala de aula está barulhenta. Chora se tentam fazê-lo subir no escorregador ou brincar no balanço do parquinho. Não veste o agasalho da escola por nada do mundo. Se recusa a copiar da lousa e a participar das atividades de Artes. Tem “chiliques” do nada.
Parece frescura, excesso de mimo, comportamento manipulador.
Mas não é.
Neurociência
Nosso sistema nervoso funciona como uma interface entre nosso organismo e o resto do mundo. Percebemos e interpretamos estímulos externos e internos recebidos através de nossos sentidos: visão, audição, tato, olfato, paladar, propriocepção e vestibular. São as chamadas Gnosias, funções extremamente complexas, que constituem as bases do aprendizado e comportamento humano. Basta pensar em situações em que qualquer dessas modalidades está prejudicada (por problemas congênitos – de nascença – ou adquiridos, como um derrame) para ter noção do impacto que isso tem na vida de um ser humano.
Não é novidade para ninguém, até pela própria convivência cotidiana com outras pessoas, que existem variações individuais na intensidade em que percebemos esses estímulos e na tolerância a eles: dentro da nossa própria família, constatamos que uns são mais ou menos sensíveis que outros em algum aspecto. Na verdade, a existência de sentidos mais aguçados tem presenteado a humanidade com grandes músicos, artistas, inventores, degustadores, atletas de alta performance e tantas outras habilidades que nos encantam.
Porém, existem indivíduos com sensibilidade tão alta a alguns estímulos, que a simples presença deles provoca reações extremas. Determinado som pode ser insuportável, a iluminação de um local provoca mal estar físico, o odor de um alimento ou perfume chega a provocar vômitos, a textura de um tecido ou substância é intolerável. E assim por diante. Dizemos que são hipersensíveis.
Também existem indivíduos que recebem esses estímulos com uma intensidade muito menor que o esperado. Tem dificuldades de perceber variações nessas sensações e podem nem identificar claramente sinais que recebem do próprio organismo, como sensações de fome, frio, calor ou dor. Dizemos que são hipossensíveis.
Para os hipersensíveis, os estímulos são quase dolorosos e a reação que provocam é de aversão, evitação e fuga, numa tentativa de auto-proteção (sensory avoiders). Para os hipossensíveis, a tendência é de comportamento de busca por aquela sensação que não recebem de maneira adequada (sensory seekers).
Para a maioria de nós, é muito difícil imaginar esses extremos de intensidade. Tão difícil quanto entender os comportamentos que podem resultar disso. Porém, o fato de não entendermos algo não faz com que esse algo deixe de existir.
Problemas sensoriais podem estar por trás de posturas corporais atípicas, modo de caminhar e de executar as tarefas do dia a dia de forma diferente, problemas de tônus, na escrita, no padrão de movimentação motora. Podem interferir no cuidado pessoal: uso de vestes e calçados, aversão a atividades de higiene pessoal, limitação da aceitação alimentar (até mesmo chegar a uma seletividade extrema). Podem levar a reações incomuns a aspectos do ambiente físico: cheiros, barulhos, iluminação, frio, calor, contato físico ou com determinadas substâncias e texturas. Podem ser os responsáveis pela recusa obstinada em realizar determinadas atividades ou por estados de fadiga e mal estar. As possibilidades são quase infinitas. Especialmente se levarmos em conta que um mesmo indivíduo pode ser hipersensível a um tipo de estímulo e hipossensível a outro!
Suportes possíveis
O Transtorno do Processamento Sensorial (TPS) pode ocorrer isoladamente, mas em geral está associado a condições do neurodesenvolvimento, como o TDAH ou o autismo. A avaliação e intervenção devem ser feitas preferencialmente por terapeutas ocupacionais com formação em Integração Sensorial.
O suporte adequado no ambiente – casa, escola, trabalho – é fundamental para o bem estar da pessoa com esta condição. Já testemunhei esforços notáveis de algumas escolas para ajudar alunos com TPS: mudança da sala de aula da criança para uma área mais favorável, substituição do sinal sonoro das aulas, permissão para uso de fones de ouvido, para executar atividades de forma alternativa ou para utilizar material diferente, para lanchar em outro local etc. Muitas vezes, pequenas mudanças são tudo o que precisamos. Basta haver compreensão, capacitação e boa vontade.
Não é raro ouvirmos comentários do tipo “Estão dando nome pra tudo hoje em dia, cada hora inventam uma doença”. Esse pensamento ocorre frequentemente num contexto em que as diferenças humanas são vistas como doenças. Na perspectiva da neurodiversidade, entendemos que as diferenças neurológicas não são erros da natureza e sim evidências de que a riqueza da nossa reserva genética é o grande trunfo da vida humana no planeta.