Há vários motivos para termos uma conversa séria sobre inteligência no autismo. O primeiro e mais importante é que devemos aceitar o fato de que ainda sabemos pouco sobre o assunto.
As dificuldades na comunicação social e o perfil atípico de aquisição de habilidades que observamos no autismo tornam difícil uma avaliação realista do potencial intelectual dos autistas.
Como discutimos no texto sobre medidas da inteligência, o uso dos instrumentos padrões podem levar a resultados imprecisos e em grande parte equivocados.
O conceito de inteligência
O próprio conceito de inteligência não é muito claro para as pessoas em geral. Não raramente, é compreendido como se fosse um bloco único de habilidades que confere bom desempenho acadêmico. Esse é um entendimento simplista, que não chega perto da realidade.
Inteligência refere-se a um complexo processamento de informações, que envolve diversos circuitos cerebrais – e de forma “independente”, é importante ressaltar. Ou seja, áreas cerebrais distintas têm um “peso” maior para o desempenho de uma pessoa nos diferentes domínios da atividade humana. Por isso alguém pode ter uma facilidade impressionante com números e raciocínio lógico, porém dificuldades com questões de linguagem, por exemplo. Ou um talento extraordinário para artes visuais e nenhuma habilidade motora.
E assim por diante.
Inteligência e autismo
Conhecer melhor as particularidades da inteligência autística pode nos ajudar a identificar melhor suas aptidões, além de oferecer subsídios para o desenvolvimento de suportes individualizados. Isso tem implicações práticas importantes, já que historicamente, autistas tem sido subestimados em relação às suas capacidades, com prejuízo direto da sua educação e empregabilidade.
É bem provável que tanto a deficiência intelectual quanto a superdotação sejam mais frequentes no TEA do que na população geral. Inclusive, diversos estudos genéticos reforçam essa hipótese. Entretanto, ainda não temos dados suficientes em mãos. O que significa que as estatísticas mecanicamente repetidas a pais – e, infelizmente, em ambientes de formação – estão incorretas, contribuindo para perpetuar o ciclo da exclusão.
É preciso ficar claro que falar de inteligência no autismo não tem nada a ver com a glamourização dos superdotados, com enaltecer o estereótipo do autista com altas habilidades retratado em filmes e séries. Trata-se, na verdade, de ampliar o entendimento sobre essa relação que se estabelece entre uma condição do neurodesenvolvimento e o potencial intelectual como um todo. O senso comum (e a maior parte dos profissionais) sustenta uma falsa ideia de que essa seria uma relação direta: autismo “leve”/ maior inteligência, autismo “severo”/menor inteligência.
Não é simples assim.
Bill Nason – um psicólogo americano que trabalha há décadas com autismo – explica a complexidade dessa relação de uma maneira interessante: ele fala para imaginarmos autismo e inteligência como duas dimensões separadas que se podem se interceptar em pontos diferentes. Podemos ter uma pessoa cujas características autistas são extremamente limitantes/ severas e que apresenta altas habilidades; e, do lado oposto, uma pessoa com manifestações leves do autismo e deficiência intelectual. Com todas as possibilidades intermediárias.
O DSM- 5 (Manual de Psiquiatria Americana) recomenda a especificação acerca da presença ou não de deficiência intelectual no diagnóstico do autismo, mas não de superdotação/ altas habilidades. Lembramos que a identificação de ambas não constitui exigência para o diagnóstico (e quase não acontece em nosso meio). Ainda assim, o texto do DSM menciona a questão da superdotação no trecho que trata da evolução do autismo ao longo dos anos, pois – da mesma forma que na deficiência intelectual – há implicações no desenvolvimento de estratégias de adaptação.
Claro que, como o nível de autismo é definido em função da necessidade de suporte, a deficiência intelectual pode ter uma participação significativa nessa demarcação e muitas vezes pode ser difícil de diferenciar a extensão das limitações de cada condição.
Porém, ao contrário do que alguns pensam, a superdotação não é exatamente um prêmio na loteria do TEA. A maior elaboração de estratégias adaptativas e o aparente sucesso na trajetória pessoal torna esse grupo o mais “invisível” de todos, o menos provável de receber diagnóstico correto e suportes/acomodações necessários. Os prejuízos sociais e ocupacionais nem sempre são compreendidos e tendem a ser minimizados ou atribuídos a questões de personalidade ou caráter. A depressão e a ideação suicida são fantasmas recorrentes.
É nesse sentido que os profissionais que lidam com autismo precisam considerar essas condições, da mesma maneira que consideram a existência de comorbidades neuropsiquiátricas. Todas elas podem modificar as manifestações do autismo, todo o quadro clínico e mesmo o prognóstico.