Autismo e narcisismo

Traços de personalidade (incluindo as formas mais extremas que caracterizam os Transtornos de Personalidade) interagem com a expressão de condições de saúde mental. Muitas vezes, essas interações precisam ser levadas em consideração durante a avaliação psicológica e psiquiátrica e também nos processos terapêuticos, para que o perfil do paciente e suas necessidades sejam corretamente identificadas.

Nesse sentido, há um interesse crescente nas relações entre diferentes Transtornos de Personalidade e o TEA. Particularmente no grupo de pessoas autistas sem deficiência intelectual – aquele em que as manifestações são mais sutis e no qual muitas dificuldades são compensadas por estratégias sociais e comportamentais – o reconhecimento de características associadas à condição pode não ser fácil nas fases iniciais da avaliação clínica, podendo inclusive levar a diagnósticos equivocados, como acontece com certa frequência em mulheres autistas que são erroneamente diagnosticadas com Transtorno de Personalidade Borderline.

A procura mais tardia por ajuda profissional, que ocorre com bastante frequência neste subgrupo do TEA, pode coincidir com a fase de vida na qual os sinais de Transtornos de Personalidade aparecem, o que exige ainda mais atenção no processo de diagnóstico diferencial, especialmente no que diz respeito à trajetória de vida de cada indivíduo.

Existem algumas semelhanças nos comportamentos observados nos Transtornos de Personalidade (TP) e no autismo “leve”. A co-ocorrência entre essas condições também pode ser vista com certa frequência, com impacto adicional na capacidade de adaptação social, na qualidade de vida, no agravamento do risco psíquico e mesmo na empregabilidade. Portanto, ao lado de outras comorbidades psiquiátricas (como ansiedade, depressão, TDAH, TOC), os TPs precisam ser considerados no processo de avaliação psiquiátrica.

A co-ocorrência do autismo com o Transtorno de Personalidade Narcisista (TPN), especificamente, tem sido descrita como sendo mais rara (0-6,4%) do que com outros Transtornos de Personalidade. Entretanto, os estudos que avaliaram essa relação se basearam apenas nos critérios diagnósticos do DSM relativos à grandiosidade, o que pode contribuir para subestimar as manifestações do espectro narcisista em autistas.

Há dois fenótipos envolvidos no diagnóstico de TPN, associados às dimensões de grandiosidade e de vulnerabilidade, que são bem distintos entre si, tanto nas experiências subjetivas quanto nas manifestações comportamentais. No lado da grandiosidade, observamos comportamento arrogante, por vezes agressivo e explorador, falta de empatia, busca por atenção e admiração, senso desmedido da própria importância. Já o padrão de vulnerabilidade é menos associado ao conceito que costumamos ter acerca do narcisismo, manifestando-se por reações de hipersensibilidade a críticas e falhas, comportamento social inibido e evitativo, perfeccionismo e sentimentos intrusivos de vergonha e culpa. Algo parecido com o perfil comportamental que conhecemos como Disforia Sensível à Rejeição, especialmente levando-se em consideração a tendência à desregulação emocional observada nesses casos.

O próprio conceito do TPN ainda está em evolução em termos de estrutura teórica, na compreensão da dicotomia entre expressões normais/patológicas, dos critérios diagnósticos e das ferramentas de avaliação. Ainda não há consenso se os fenótipos de grandiosidade e vulnerabilidade fazem parte do mesmo constructo, já que implicam em diferenças no que se refere a níveis de funcionalidade social, aderência ao tratamento, comorbidades e prognóstico.

Porém, de acordo com a conceituação atual do narcisismo, identificar tanto os componentes de grandiosidade, como de vulnerabilidade na avaliação clínica, é importante para o diagnóstico diferencial e para investigação de comorbidade. Inclusive, é interessante notar que nos casos de adultos em que havia suspeita de TEA e este é excluído, o TPN é um dos principais diagnósticos, por isso a importância de entender quando a atitude do paciente reflete, na verdade, a percepção de uma inadequação social, déficit da Teoria da Mente ou outras questões associadas ao TEA.

Um estudo recente foi realizado com o objetivo de avaliar traços de narcisismo em amostra de adultos com autismo sem deficiência intelectual. Os resultados apontam para maior ocorrência de traços narcisistas na dimensão de vulnerabilidade, mas não de grandiosidade (nesta, as pontuações mostram-se muito semelhantes às da população geral, ou seja, cerca de 2%).

No campo de estudos sobre narcisismo, tem sido observada uma conexão entre a dimensão de vulnerabilidade (a hipersensibilidade a críticas e tendência à desregulação emocional com sentimentos de vergonha, culpa, raiva e afeto deprimido) e traços de personalidade de neuroticismo. Portanto, a possível ligação entre a fenomenologia do TEA e a vulnerabilidade narcisista pode ser a dimensão do neuroticismo em si, já que o neuroticismo e a desregulação emocional são semelhantes no TEA e no TPN, sendo em ambos mais elevados do que na população geral.

Essas observações levantam questões interessantes a serem exploradas, como as relações entre TEA, TPN e neuroticismo e no possível papel da vulnerabilidade narcisista mediando sintomas internalizantes (tristeza, retraimento, sentimentos de vergonha, medo e inferioridade) relatados por autistas.

 


Referência: BROGLIA, G. et al. Traits of narcissistic vulnerability in adults with autism spectrum disorders without intellectual disabilities. Autism Research, v. 17, n. 01, p. 138-147, jan. 2024.

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Dra. Raquel Del Monde

É médica formada pela USP – RP (1993), com residência em Pediatria pela Unicamp (1996) e Treinamento em Psiquiatria da Infância e Adolescência também pela Unicamp (2013). Viu sua carreira mudar quando seu filho mais velho recebeu o diagnóstico de autismo em 2006. Desde então, vem se dedicando exclusivamente ao atendimento de pessoas neurodiversas, ao aprofundamento nas questões da neurodiversidade, e tornou-se uma ativista da luta anti-capacitista.