CID 11 Chega ao Brasil: O que muda para o autismo?

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Enfim, a tão esperada e comentada CID 11 entrou em vigor no Brasil após 3 anos de transição – tempo necessário para ser traduzida e validada para nosso idioma e para ser adaptada a processos logísticos e projetos que utilizavam a CID 10.

Vamos lembrar que a CID (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde) é adotada por 194 países, Estados-membros da Organização Mundial da Saúde (OMS), como a principal ferramenta para nortear ações de saúde pública. Ela abrange as mais diversas situações relacionadas à saúde, sendo de extrema importância na coleta de dados a nível mundial, integração de serviços de saúde, desenvolvimento de ações de prevenção ou enfrentamento de doenças (inclusive de interesse da coletividade, como epidemias), direcionamento de recursos humanos e financeiros, entre outros objetivos. De modo geral, a nova classificação foi recebida com entusiasmo. Afinal, depois de mais de 30 anos da publicação da CID 10, a necessidade de atualização científica e de formato (permitindo a integração de sistemas de saúde diversos e facilitando o acesso a informações relevantes numa versão digital) era mais que premente.

No que se refere à saúde mental, observamos esforços para aproximar a nova CID do DSM (o manual da Associação Americana de Psiquiatria). O DSM é um referencial para o processo diagnóstico de condições da saúde mental no mundo todo, apesar de não ser uma classificação oficial em outros países. Em relação ao autismo, a exemplo do DSM 5 (a versão mais recente do DSM, publicada em 2013 e revisada em 2022), tivemos a unificação de subgrupos (como a Síndrome de Asperger e o autismo atípico) em um único diagnóstico, o Transtorno do Espectro do Autismo. A CID 11 não adota a classificação do TEA em níveis de suporte como o DSM, mas em reconhecimento à heterogeneidade da condição, demanda o uso de especificadores: presença ou ausência de deficiência intelectual e nível de comprometimento da linguagem. É claro que nem os níveis de suporte, nem o uso desses especificadores conseguem abarcar a complexidade da condição, ou seja, não conseguem descrever as particularidades de um indivíduo ou suas necessidades específicas de suporte; ambos servem apenas para categorizar algumas características.

Vamos falar um pouco dos especificadores da nova classificação.

 

Especificadores do TEA na CID-11: Deficiência Intelectual e Prejuízo da Linguagem

Deficiência intelectual é um assunto complexo e vamos abordar apenas os pontos principais. Por definição, trata-se de uma condição em que há déficit geral do processamento cognitivo de uma pessoa (o que é bem diferente dos transtornos específicos de aprendizagem) e que tem início da infância. Nas pessoas com deficiência intelectual, as habilidades para assimilar as informações do ambiente, fazer associações e inferências, elaborar soluções e incorporar os novos conhecimentos às suas respostas adaptativas são reduzidas, em níveis variáveis. Na prática, o diagnóstico é feito com base no resultado de baterias de testes padronizadas (conhecidos como “testes de QI”, mas que são mais que isso), quando o desempenho da pessoa fica abaixo de dois desvios padrão da média (ou seja, geralmente abaixo de 70 pontos, nos testes mais usados). Entretanto, esses instrumentos podem levar a resultados imprecisos e equivocados na avaliação de perfis cognitivos diferentes, como é o caso dos autistas. É imprescindível que o psicólogo que conduz a avaliação neuropsicológica – responsável pela escolha dos instrumentos e interpretação dos resultados – tenha um amplo conhecimento da área.

Obviamente, tais profissionais são escassos no nosso país e frequentemente as avaliações subestimam a capacidade dos autistas, embora possam trazer informações valiosas sobre diferentes habilidades.

Quanto ao domínio da linguagem, a nova classificação utiliza três níveis diferentes:

  • comprometimento leve ou ausente da linguagem funcional
  • linguagem funcional prejudicada
  • ausência de linguagem funcional

 

Linguagem e Comunicação Não São a Mesma Coisa!

Uma das primeiras perguntas que recebi foi: “Como podem falar em comprometimento ausente da linguagem funcional numa pessoa autista?”

Vamos lá: o autismo se caracteriza, obrigatoriamente, entre outros critérios, por dificuldades na comunicação social. Mas comunicação social envolve muito mais que o domínio da linguagem, refere-se a trocas significativas nos mais variados contextos. Linguagem é apenas um dos aspectos da comunicação. Quando se fala em linguagem funcional, estamos falando da utilização de um código (oral, escrita, não verbal, por meio de tecnologia assistiva) que seja eficaz para que a pessoa consiga transmitir e receber mensagens de modo a participar do mundo ao seu redor com independência. Quando existe um comprometimento leve, significa que a pessoa tem um bom domínio da linguagem, mas que a troca social pode ser prejudicada em determinados momentos (por exemplo, devido a entendimento literal ou dificuldades no comportamento de solicitação). Já no caso de linguagem funcional prejudicada, há necessidade de apoio de outra pessoa na maior parte do tempo, em ambientes não familiares, para que ocorra uma comunicação satisfatória. Isso pode acontecer mesmo com autistas que falam muito bem, mas tem baixa cognição social, por exemplo. Nos casos de ausência de linguagem funcional, a troca de mensagens é extremamente difícil, mesmo com os cuidadores e pessoas próximas.

 

Os Novos Códigos do TEA na CID-11

A nova codificação considera as diferentes combinações entre os especificadores:

  • 6A02 Transtorno do Espectro do Autismo (TEA)
  • 6A02.0 Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) sem deficiência intelectual (DI) e com comprometimento leve ou ausente da linguagem funcional
  • 6A02.1 Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) com deficiência intelectual (DI) e com comprometimento leve ou ausente da linguagem funcional
  • 6A02.2 Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) sem deficiência intelectual (DI) e com linguagem funcional prejudicada
  • 6A02.3 Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) com deficiência intelectual (DI) e com linguagem funcional prejudicada
  • 6A02.5 Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) com deficiência intelectual (DI) e com ausência de linguagem funcional
  • 6A02.Y Outro Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) especificado
  • 6A02.Z Transtorno do Espectro do Autismo (TEA), não especificado

 

Muitas pessoas estão preocupadas quanto à menção de presença ou ausência de deficiência intelectual ou nível de prejuízo de linguagem nos laudos que serão feitos com base no novo CID 11, já que o acesso a avaliações adequadas é tão restrito. É importante saber que o médico que faz o relatório pode usar apenas o CID geral (6A02), sem especificações, caso não tenha dados suficientes para uma conclusão segura.

CRM 78.619/SP

Dra. Raquel Del Monde

É médica formada pela USP – RP (1993), com residência em Pediatria pela Unicamp (1996) e Treinamento em Psiquiatria da Infância e Adolescência também pela Unicamp (2013). Viu sua carreira mudar quando seu filho mais velho recebeu o diagnóstico de autismo em 2006. Desde então, vem se dedicando exclusivamente ao atendimento de pessoas neurodiversas, ao aprofundamento nas questões da neurodiversidade, e tornou-se uma ativista da luta anti-capacitista.