Certamente, um dos fatores que sempre dificultaram a identificação do autismo enquanto diagnóstico é a sua heterogeneidade, ou seja, a multiplicidade de formas em que ele se apresenta. Desde o início, as características mais marcantes da condição – dificuldades na comunicação social e padrões de interesses e comportamentos restritos e repetitivos – variavam amplamente nas descrições profusas que já eram abundantes nas décadas de 30 e 40.
Os rótulos do autismo
“Encaixar” pessoas com tantas diferenças em suas habilidades e dificuldades em um único diagnóstico nunca foi uma tarefa simples. Ao longo do tempo, muitas tentativas foram feitas no sentido de identificar subtipos de autismo, na busca por um modelo que conseguisse separar autistas em grupos com características semelhantes. Algumas dessas tentativas foram reproduzidas nos sistemas de classificação oficiais, ganhando até “códigos” distintos.
Fora dos manuais, informalmente, profissionais também usavam expressões para diferenciar formas de manifestação dissonantes entre si. Falava-se muito, por exemplo, em “autismo clássico” ou “autismo de Kanner” para se referir a pessoas com dificuldades mais graves de linguagem e com comportamentos que destoavam muito do padrão neurotípico, e em “Síndrome de Asperger” para todos os autistas com bom domínio de linguagem e alterações de comportamento mais sutis. Os termos “autismo de alto funcionamento” e “autismo de baixo funcionamento” também eram usados para designar respectivamente pessoas “mais” ou “menos capazes” de executar tarefas com autonomia e viver com independência. No entanto, seria equivocado afirmar que apenas profissionais buscavam modos de classificar a “gravidade” de seus pacientes. Essa sempre foi uma grande angústia de pais e mães de crianças autistas ao receber o diagnóstico, e até mesmo de pessoas autistas adultas. Os termos leve, moderado e severo corriam soltos (como ainda acontece), em grande parte das vezes utilizados de forma arbitrária e, não raramente, incorreta.
É inegável que as necessidades de suporte variam amplamente dentro do espectro, e é natural que as pessoas envolvidas anseiem por saber o que devem esperar do futuro. Mas a verdade é que reduzir toda a complexidade dessa questão em rótulos espartanos não vai trazer as respostas desejadas.
A marca do autismo é a heterogeneidade
São muitas as razões que explicam por que as tentativas de emplacar subcategorias e termos têm fracassado ao longo do tempo.
Vamos falar aqui das principais delas.
- Falhas na validação de subtipos. Os critérios de inclusão e exclusão para as diferentes categorias já propostas eram imprecisos e limitavam a replicação de estudos.
- As variações encontradas no espectro são de altíssima complexidade. Ao contrário do que muita gente imagina, as particularidades que caracterizam o TEA não se apresentam de forma linear, de “leve” a “muito grave”, mas sim de forma multidimensional. Por exemplo: uma pessoa autista com boas habilidades de comunicação pode apresentar rigidez extrema e alterações do processamento sensorial limitantes. São muitas combinações possíveis.
- O autismo, enquanto transtorno do neurodesenvolvimento, com frequência está associado a outras condições (diagnosticadas separadamente) – em especial a deficiência intelectual e os transtornos de linguagem, assim como transtornos neuropsiquiátricos como a ansiedade e a depressão. Muitos deficits e dificuldades originados dessas condições podem ter um grande impacto na vida de uma pessoa autista, misturando-se aos deficits e dificuldades do autismo em si e elevando sua necessidade de suporte.
- Os ganhos (no sentido de aquisição de habilidades) ao longo do desenvolvimento de cada pessoa podem ser muito variáveis em função dos suportes recebidos (familiares, terapêuticos, educacionais) e do próprio potencial de cada um. Desse modo, falar em “graus” precocemente é apenas um exercício de adivinhação.
- A maior parte dos autistas apresenta um perfil irregular de habilidades, não necessariamente ligado ao potencial intelectual. Mesmo aqueles que se destacam em áreas específicas podem não corresponder as demandas do dia a dia da forma esperada. Por exemplo: um autista com memória prodigiosa pode ter dificuldades imensas para ir à padaria da esquina sozinho. As aparências podem não corresponder à realidade.
DSM-5
Então, em 2013, o DSM 5 (Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) uniu os diagnósticos anteriores em um só, que foi denominado Transtorno do Espectro do Autismo.
O grupo de trabalho envolvido nesta seção do Manual se opôs a uma escala de gravidade, justamente pelas razões expostas acima, e apresentou então uma gradação em níveis baseados em necessidades de suporte: nível 1, 2 e 3. Esse nível de suporte, por sua vez, deve ser considerado separadamente para os dois grandes domínios de critérios diagnósticos (comunicação social e interesses/ comportamentos restritos e repetitivos), levando em conta que uma pessoa pode ter mais dificuldades em uma dessas áreas do que na outra.
Vale a pena observar que a versão revisada do DSM (o DSM-5 TR) ressalta que o texto que descreve os níveis 1, 2 e 3 é constituído de exemplos, e não de características mandatórias. O manual também deixa claro que as necessidades variam de acordo com o contexto, e que elas podem flutuar ao longo do tempo. Portanto, é preciso um conhecimento aprofundado das habilidades, dificuldades e do ambiente de cada pessoa para determinar seu nível de suporte.
Um dos pontos mais importantes anunciados pela nova classificação em níveis de suporte diz respeito ao seu caráter descritivo e não prescritivo. Isso quer dizer que o planejamento terapêutico e a instituição de intervenções, apoios e acomodações não ocorrem em função do nível de suporte da pessoa, e sim a partir de uma avaliação individual, que considere seus desafios, prioridades e objetivos. A intenção foi justamente evitar que os provedores de serviços se prendessem a determinadas características visíveis/aparentes ou a análises superficiais de desempenho para decidir o tipo e a intensidade de terapias/apoios que uma pessoa necessita.
O conhecimento científico é dinâmico. Devemos estar atentos a essas mudanças, para garantir que seja cumprido seu propósito maior, o de tornar melhor as vidas das pessoas.