Do ponto de vista da saúde pública, conhecer a prevalência de uma condição é fundamental para a alocação de recursos para pesquisa e assistência aos indivíduos afetados.
O aumento vertiginoso das estatísticas do TEA nas últimas décadas tem preocupado profissionais e a sociedade como um todo, tendo sido por diversas vezes levantada a hipótese de uma “epidemia”. Entretanto, é preciso que esses números sejam analisados à luz da evolução do conhecimento científico neste mesmo período e também do contexto histórico-cultural de cada época.
Autistas existem desde que o mundo é mundo
O autismo não passou a existir em 1943 com a descrição de Kanner.
Autistas existem desde que o mundo é mundo. Aliás, pelo menos duas décadas antes da publicação do trabalho de Kanner, a condição que hoje conhecemos como TEA foi descrita minuciosamente por Sukhareva, na Rússia. Numerosos outros autores estavam envolvidos com estudos sobre a “nova” condição – entre eles Hans Asperger na Áustria, que descreveu publicamente todo o “continuun” do TEA em 1938.
Entretanto, estudos de prevalência só podem ser feitos quando os critérios para seu diagnóstico são oficializados e aceitos pela comunidade científica. De outra forma, os casos continuarão não identificados e relegados à invisibilidade estatística. E a oficialização veio com Kanner.
Evolução dos estudos de prevalência
O primeiro estudo de prevalência foi feito por Lorna Wing, na Inglaterra. Porém, ela logo ela percebeu que os critérios rígidos, monolíticos e limitados de Kanner deixavam muitos autistas de fora do diagnóstico. Ao aprofundar suas pesquisas e redescobrir os trabalhos de Asperger, Lorna e sua equipe, já na década de 70, previram uma “explosão de diagnósticos”, já que, obviamente, à medida em que os critérios para diagnóstico se ampliam, a prevalência da condição também se altera.
Foi justamente o que ocorreu.
- As estatísticas do CDC americano em 1966 traziam uma prevalência de 1:2.500 para o autismo.
- Em 1987, passou para 1:1.400.
- Em 1991, o diagnóstico de autismo passou a garantir suporte de educação especial e as escolas passaram a ter controle das crianças matriculadas que possuíam esse diagnóstico.
- A prevalência no ano de 2000 passou a 1:150.
- Em 2006, foi sistematizada a realização de triagem de todas as crianças nas consultas de rotina, aos 18 e aos 24 meses e já em 2008, a prevalência estimada era de 1:88.
- O pico foi atingido em 2012, quando o CDC chocou o mundo com o famoso 1:68, ocasionando muita polêmica e questionamentos.
Vários pesquisadores ao redor do mundo levantaram uma importante discussão acerca do entendimento da prevalência do autismo. As questões discutidas são tão ou mais importantes do que a obtenção pura e simples de um número.
Muitos fatores precisam ser considerados quando analisamos as estatísticas relacionadas ao autismo:
Os critérios diagnósticos em si
Os maiores aumentos na prevalência ocorreram em épocas de mudanças e ampliação de critérios, ou seja, são acréscimos artificiais, no sentido de que não podem ser comparados, já que não se baseiam nas mesmas premissas.
Disponibilidade de profissionais habilitados a fazer o diagnóstico
Sendo um diagnóstico clínico por excelência, o preparo técnico e a experiência dos profissionais são um ponto crítico para que a condição seja reconhecida. Países com maior oferta de qualificação de profissionais e serviços apresentam maiores probabilidades de fazer o diagnóstico. Como é fato conhecido, quando autistas são avaliados por profissionais sem o conhecimento necessário, geralmente ficam sem diagnóstico ou com diagnóstico errôneo.
O fenômeno da “Substituição Diagnóstica”
Um fenômeno observado nos países com sistemas de notificações e registros mais antigos e fidedignos é chamado de “Substituição Diagnóstica”. Significa que pessoas anteriormente diagnosticadas com Deficiência Intelectual, Esquizofrenia Infantil, Atraso do Desenvolvimento passaram a ter o diagnóstico de autismo. Isso fez com que o número total de crianças designadas para a Educação Especial não foi alterado, mas seus diagnósticos sim.
A conscientização da sociedade
A conscientização da sociedade como um todo tem impacto direto na busca das famílias por um diagnóstico. À medida que o autismo foi ficando mais conhecido das pessoas (inicialmente por filmes de grande alcance como “Meu filho, meu mundo” e “Rain Man”, passando por exposição cada vez maior na imprensa escrita, reportagens televisivas, chegando às mídias sociais e atualmente em dezenas de filmes, documentários e mesmo séries de TV), muitas pessoas passaram a ter informações que antes só circulavam entre um restrito segmento de profissionais, gerando um aumento cada vez maior da demanda por avaliações.
A luta pelos direitos dos autistas
A luta pelos direitos dos autistas resultou na criação de leis para garantir suporte terapêutico e educacional em muitos países (além de outros benefícios). Em circunstâncias quando o diagnóstico oficial para uma criança é a diferença entre garantir que tenha oportunidade de receber os atendimentos que precisa ou não receber suporte algum, os profissionais ficam inclinados a ser mais permissivos.
As diferenças metodológicas
Estudos de prevalência são caros e difíceis de ser realizados. Os autores devem optar pelo segmento populacional que será alvo do estudo e pela maneira de obter os dados. O CDC, por exemplo, mantém um projeto de vigilância de prevalência em 11 centros de monitoramento, onde médicos treinados revisam prontuários médicos e escolares das crianças com 8 anos, a cada 2 anos e decidem se preenchem os critérios para diagnóstico de autismo, mesmo que a criança não tenha um diagnóstico formal. As crianças, em si, não são avaliadas. O estudo sueco de 2015, conduzido por Sebastian Lundstrom, contou com a vantagem do país possuir uma excelente estrutura de registros populacionais, conseguindo atingir um número expressivo de crianças, que foram acompanhadas por dez anos. Ele buscou comparar a prevalência do fenótipo do autismo (por meio de entrevistas utilizando instrumento validado) com o registro de diagnósticos no mesmo período. Encontrou a prevalência do fenótipo de 1% (mesma que a da Austrália, por exemplo) e observou que esta manteve-se estável durante o período do estudo, ao passo que o registro dos diagnósticos oficiais continuavam subindo, indicando mudanças na esfera administrativa e não em fatores afetando a patogênese.
Proporção de casos de TEA entre meninos e meninas
A proporção de casos de autismo entre meninos e meninas continua sendo alvo de debates. O CDC apresenta como sendo de 4,5 meninos para cada menina, enquanto um estudo de metanálise aponta para 3:1. O fato é que a manifestação nas meninas costuma ser mais sutil e elas frequentemente são subdiagnosticadas.
Evolução dos estudos genéticos
Os estudos genéticos mais atuais apontam para a existência de vários autismos, ou seja, alterações genéticas diferentes, levando a diferentes alterações no neurodesenvolvimento que, em comum, apresentam os déficits de comunicação e comportamento que definem o autismo. Isso explica tanto a heterogeneidade do espectro quanto a presença de comorbidades tão diversas entre os autistas. Inclusive, o DSM 5, de 2013, permitiu pela primeira vez a realização de diagnósticos múltiplos (autismo E TDAH, Autismo E síndromes genéticas etc.).
Isso talvez abra novas possibilidades de estudos de prevalência no futuro.
BMJ 2015;350:h1961