Não me canso de falar aqui sobre a necessidade de um olhar clínico refinado para a avaliação das características mais sutis do autismo.
Não há como avaliar comunicação social, por exemplo, sem alguns conhecimentos sobre a área da comunicação de forma mais ampla, ou vamos continuar presos indefinidamente àquela coisa do “mas ele fala tão bem, não pode ser autista!”.
Comunicação vai além da fala
Todo o comportamento comunicativo de um indivíduo envolve muito mais que a fluência na linguagem oral. O modo de usar as palavras é muito mais significativo do que a fala em si.
A participação de um indivíduo numa interação verbal envolve o domínio de vários elementos: processos cognitivos (atenção, memória, velocidade de processamento de informações),habilidades linguísticas em si (tais como repertório semântico – isto é, conhecimento prévio do significado de palavras e expressões – e uso adequado das regras próprias da língua usada), capacidade de inferir aspectos da troca comunicativa (ligada à Teoria da Mente; compreensão das expectativas dos interlocutores, comprometimento ao tema, tomada de turnos, arranjos aceitáveis numa conversa de grupo), entendimento das regras sociais da cultura local (muitas vezes jamais explicitadas, incluindo scripts próprios de determinada situação, reconhecimento de estruturas de poder, compreensão das pistas verbais e não verbais que sinalizam a adequação da comunicação), além de aspectos emocionais.
Nosso tema de hoje refere-se a uma peculiaridade que observamos nos autistas, em meio aos aspectos mais complexos – e sutis – do comportamento comunicativo: a dificuldade no comportamento de solicitação.
Comportamento de solicitação
Podemos entender o comportamento de solicitação como o ato de comunicar um desejo ou necessidade a outra pessoa com o objetivo de solicitar auxílio.
É preciso deixar claro que, quando falamos em dificuldade no comportamento de solicitação no autismo, não se trata da dificuldade de elaborar o pedido por meio de palavras. Ao contrário, alguns dos autistas com essa dificuldade têm domínio absoluto no uso da linguagem oral. Ainda assim, apesar da fluência verbal, eles apresentam dificuldade de pedir a ajuda de terceiros, mesmo em diferentes fases da vida. Seja para coisas simples como tirar ou colocar o tênis na escola ou para pedir mais um pedaço de bolo na festinha do amigo, quando crianças. Os maiores, talvez para fazer um pedido na cantina da escola ou na padaria, ou para sinalizar questões emocionais. Já adultos, podem passar maus pedaços para pedir informações necessárias no trabalho ou em outros aspectos da vida cotidiana.
Vários adultos autistas já fizeram relatos sobre essa dificuldade.
Na clínica, alguns já me contaram episódios em que preferiram andar longas distâncias do que pedir carona a alguém ou perguntar por informações sobre o transporte público. Outros, que preferiram esperar uma chance de pesquisar no Google algo que poderiam ter perguntado para a pessoa ao lado. Muitos confessam ter ficado muito frustrados por não conseguir expressar seu desejo ou necessidade, mesmo sem saber exatamente por que não o fizeram.
É uma dificuldade relativamente frequente e notável, que acarreta prejuízos variáveis em seu cotidiano e muitas vezes afeta a própria autonomia.
Origens da dificuldade
As origens dessa dificuldade são de ordem complexa. O déficit da Teoria da Mente faz com que haja uma grande insegurança em relação a como aquele pedido pode ser recebido pelo outro, como sua fala será percebida, se vai levar ao resultado almejado ou não.
Para além disso, a incerteza de contar com recursos para lidar com o desenlace de uma situação que foge dos seus scripts habituais e o receio de mostrar sua vulnerabilidade (de que a máscara da competência social, tão cuidadosamente construída, seja evidenciada).
Como sempre, identificar a dificuldade é um passo importante para criar estratégias para lidar com ela.
Gostaria de deixar registrada minha gratidão a Luiz Henrique Magnani por enriquecer tanto minhas observações clínicas cotidianas com suas ponderações e conhecimento. O Henrique é autista, doutor em Letras pela USP, professor na área de Linguagem na UFVJM e está finalizando seu pós-doutorado, também na USP, sobre autismo e linguagem. Me sinto imensamente privilegiada em poder dialogar com ele acerca das minhas inquietações na área.